“A gente quis externalizar essa tortura mental”: Autores da peça “Em Fragmentos” falam sobre saúde mental, arte e improviso

Performance criada por estudantes da UFSC propõe um mergulho no subconsciente, tocando temas como depressão, ansiedade e insegurança

Yandara Cristina

Atores da performance Em Fragmentos encenam momentos de introspecção e conflito emocional no palco do Teatro Carmen Fossari. (Foto: @iamsthel)


Apresentada na 12ª edição da Mostra Acadêmica de Artes Cênicas (MAÇÃ), a performance Em Fragmentos nasceu de uma proposta de improvisação em sala de aula, mas rapidamente se transformou em algo maior. Guiados por uma imagem da personagem Alice, de Alice no País das Maravilhas, os estudantes Guilherme Fonseca, Samara W. e Nick Stein criaram uma narrativa que reflete o embate cotidiano entre razão e emoção, consciente e subconsciente.

Nesta entrevista ao Caderno Cultural Expressões, os três artistas falam sobre o processo criativo da peça, os desafios de trabalhar sem roteiro, a experiência no palco do Teatro Carmen Fossari e a relação entre arte, subjetividade e política. Uma conversa que revela não apenas os bastidores de uma performance, mas também a formação de artistas em processo — humanos, vulneráveis e conscientes de seu papel social.

CADERNO EXPRESSÕES – Como surgiu a ideia da peça? Houve modificações desde então? 

GUILHERME —   A peça surgiu em uma aula de improvisação, onde tínhamos que criar uma cena a partir de algumas imagens disponibilizadas em sala. A nossa imagem foi da personagem Alice, de Alice no País das Maravilhas, com o gato em cima da árvore. E foi quando surgiram as perguntas: O que ela está fazendo? Ela está só olhando um gato? Ou ela está observando um mundo paralelo? Qual era a percepção dela desse gato? A gente se colocou no lugar da Alice e a partir dali o gato foi o nosso subconsciente. Então, o nosso personagem que contracenava com a Alice era o nosso próprio subconsciente, então surgiu a ideia de fazer o personagem que adentrava o próprio subconsciente. 

A nossa peça foi toda projetada inicialmente dentro de cinco minutos, que era a proposta em sala, com formas de improvisação mesmo. Mas a gente viu que poderia ser aperfeiçoado, então houve essa melhoria para a nossa apresentação, porque assim como uma boa improvisação, a gente pretende manter essa essência de não ter um roteiro, mas existem cenas que exigem que a gente tenha uma certa sincronização. 

CADERNO EXPRESSÕES – Por que decidiram apresentar a peça no MAÇÃ? Vocês pensam em apresentá-la novamente em algum outro contexto? 

NICK  Como recebemos um retorno positivo e até mesmo inesperado dos nossos colegas de turma, pensamos “por quê não?”. Um tema tão atual como a saúde mental, principalmente na situação em que nos encontramos, referente à escala 6×1, precisa ser discutida. Com isso, trabalhamos melhor a ideia dos personagens para podermos apresentar, e com certeza se surgirem outras oportunidades pensamos em trazer novamente a peça. 

CADERNO EXPRESSÕES – A peça gira em torno de 3 personagens, o que cada um deles representa dentro da peça, quais características que marcam cada personagem e, se você pudesse definir cada um em uma palavra, qual seria? 

GUILHERME  A peça, inicialmente, pesquisa os nossos sentimentos do subconsciente. Sendo ele um subconsciente ativo somente durante seu sono, mas um consciente passivo na sua tomada de decisão. Porque, por mais que tente agir com o racional, o subconsciente também interfere no dia a dia. 

Então, o que cada um representa dentro da peça é exatamente o que a gente pensou para esse subconsciente, cada ator era um sentimento que habitava o nosso subconsciente, porque enquanto em uma sociedade que tenta nos moldar, nós vestimos muitas máscaras. E na apresentação, a intenção era que cada um vestisse a máscara desse sentimento que a gente esconde, sendo os três uma pessoa só, então foi uma transição da Alice lá no começo. Ela começa com uma depressão, que foi representada pela Samara, uma insegurança, que foi representada por mim e, posteriormente, uma crise de ansiedade, que foi representada pelo Nick.

Bom, sobre as características, foram trabalhadas as nossas próprias inseguranças, o que é muito delicado porque a gente teve que se mostrar, mergulhar dentro de nós mesmos e se permitir se expor sem julgamento. Diante disso, nós tivemos que nos desprender dos pré-julgamentos, primeiro com nós mesmos, para depois conseguirmos modelar, até mesmo o movimento que a gente ia fazer com base no estado que o nosso personagem estaria ali mentalmente naquele momento. 

A peça gira em torno da realidade do cotidiano moldado pela sociedade, e os sentimentos conflitantes que ela produz. Dentro deste tema, quais sentimentos são exteriorizados nesse embate entre personagens? 

SAMARA — Nós queríamos expor o que todo mundo passa, porque todo mundo tem dentro de si essas emoções, às vezes um dia mais aflorado uma, mais aflorado outra, mas a gente não costuma conversar sobre isso. 

Hoje em dia não é tanto tabu quanto era antes, mas ainda assim tem um pouco de preconceito, e isso se deve a nossa vida muito corrida, seja por se preocupar com o dinheiro no fim do mês, ou não poder faltar no serviço, e por conta dessa e várias outras realidades, acabamos não descansando. Nós queríamos transpassar isso durante a peça: como é mais comum que a gente imagina. 

Não é somente eu que passo por isso, você também passa, ele também passa, e nós precisamos ressaltar isso, para mostrar como nós normalizamos tanto essa situação, mas não é normal, a gente quer tratar. 

CADERNO EXPRESSÕES – Imagino que trabalhar de forma improvisada não seja tão fácil. Como isso foi planejado durante os ensaios? E existiu alguma organização de roteiro, ou preferiram manter a improvisação do começo ao fim? 

SAMARA — Nós concordamos que improvisado seria melhor porque todo mundo ali é inexperiente, então a gente não ia conseguir expressar ou colocar tanta vida nessas emoções se fosse roteirizado, íamos estar pensando: “tem que falar isso, tem que falar aquilo” e esquecer de realmente viver o sentimento, e na improvisação não tem tanto uma base a seguir, tínhamos um tema e íamos falando naturalmente, o que se torna muito mais fácil de entregar. Mas pode ser que mais pra frente a gente vá trabalhando mais nesta cena, e resolva fazer algo mais roteirizado. 

E, apesar de ter desafios, foi a melhor opção na minha visão, pois assim a gente conseguiu dar mais vida, e ensaiamos as cenas que eram em conjunto, as cenas onde a luz ia apagar, ensaiamos pra poder saber qual momento que iria colocar tal elemento, mas as cenas de cada um a gente não ensaiou, e foi feito na hora. 

CADERNO EXPRESSÕES – Foi sua primeira peça apresentada? Qual foi o sentimento de se apresentar no Teatro Carmen Fossari? E teria algo que você mudaria na peça? Por quê? 

GUILHERME —  No Carmen Fossari, e aqui em Florianópolis, foi minha primeira peça, e o sentimento foi o mesmo que da primeira vez, aquela insegurança de estar longe da minha zona de conforto, porque uma coisa é me apresentar em Minas para um público que é desconhecido, mas também é um público do meu dia a dia, tem uma cultura ali dentro, e aqui é um outro mundo, é outra cultura, são outras pessoas, outros costumes, então deu aquele frio na barriga.

Em relação a peça, eu não mudaria nada, porque como foi a primeira vez, a nossa improvisação, seria uma forma de não valorizar o nosso próprio trabalho, mas com certeza teriam ajustes para uma próxima apresentação.

SAMARA —  Sim, para mim foi a primeira vez que apresentei algo, na verdade, foi a primeira vez que eu subi no palco. Eu achei que iria ficar muito nervosa, com medo de travar e não sair nada. Mas na verdade foi o contrário, eu estava nervosa antes de entrar, mas assim que subi no palco eu me senti calma.

E eu acho que no momento não teria nada que eu mudaria, porque a gente apresentou o melhor que conseguimos. O que pode acontecer é a gente desenvolver a apresentação mais ainda, mas eu acho que foi tudo como tinha que ser agora. 

NICK —  Não foi minha primeira peça, porém foi meu primeiro drama, e apresentar ele em uma estrutura como o Carmen Fossari foi uma experiência quase mágica, e nossa equipe técnica contribuiu para que tudo fosse possível. 

Sobre mudanças na peça, eu acredito que toda peça é uma experiência e esse é o motivo do porquê eu adoro o teatro, e acredito também que por ser uma improvisação essa experiência se torna ainda mais mutável e flexível, então mesmo que não tenha nada específico que eu gostaria de mudar, sei que se nos apresentássemos novamente seria uma outra experiência totalmente diferente. 

CADERNO EXPRESSÕES – Como foi pensado a estética dessa peça? Os figurinos, cenários, iluminação, etc.

NICK —  Toda a peça foi pensada para que trouxesse uma reflexão, um desconforto, uma angústia, elementos que realmente chamasse a atenção do público. A peça se passa na parte da noite, único horário onde a mente “descansa”, mas na verdade está trabalhando ainda, por isso no uso do figurino optamos por pijamas, para trazer realmente essa sensação de estar indo dormir. Já o som de um relógio constantemente durante toda a peça veio para trazer a questão do tempo, pois ele está passando e não há nada o que fazer sobre isso; toda a iluminação veio para trazer essa dramatização e enfatizar o colapso da mente e a música veio pra trazer esse drama final, este último suspiro de que sempre temos que acordar pra viver mais um dia. 

CADERNO EXPRESSÕES – Estando cursando Artes Cênicas na UFSC há um ano, você sente que os ensinamentos da universidade te ajudaram de alguma forma? Se sim, quais e de que forma? 

GUILHERME — Sim. Por mais que eu já tenha tido contato com o teatro por cinco anos anteriormente, mas aqui dentro da faculdade eu estou tendo vivências que estão me permitindo explorar mais enquanto ator e ter mais confiança comigo mesmo em cena, no palco. 

E, claro, a confiança a ponto de me colocar num momento de improvisação. Acredito que é um momento em que você está desassistido, é preciso tirar do seu último neurônio alguma coisa para tentar manter uma narrativa. E poderia ser uma apresentação solo, seria muito mais fácil, mas, a partir do momento que envolve três pessoas, a gente tem que ter uma linha de narrativa que um vai abranger o outro e, no final, precisa terminar de maneira orgânica. 

Então, fez muita diferença estar cursando Artes Cênicas nesse momento, ter essa confiança e conseguir ter o tato de lidar com a improvisação e, ao mesmo tempo, me comunicar em cena somente através do olhar. 

SAMARA —  Eu percebi até na minha vida como a Artes Cênicas me ajudou a ser mais expressiva, a não ter vergonha de falar o que eu penso, de me expressar, de mover meu corpo, de tudo. Nós somos estudantes do nosso corpo, então a gente vai aprender a se expressar com ele, e isso me ajudou a ficar mais confiante no palco, e na vida me ajudou a não ter vergonha de me expressar 

NICK —  Eu sinto que nesse ano que eu entrei nas Cênicas, eu aprendi e cresci muito, tanto como artista, quanto como pessoa. Eu realmente acho que sem esses ensinamentos eu não conseguiria sequer subir em um palco de maneira tranquila, e eu só aprendi realmente a improvisar dentro do curso, então posso afirmar que sem as Cênicas eu não estaria na peça junto aos meus colegas. 

CADERNO EXPRESSÕES – Você acredita que o teatro e a política se entrelaçam de alguma forma na sua carreira? Se sim, o que você espera alcançar ao se apresentar em peças? 

GUILHERME —  A arte e a política estão 100% de mãos dadas. Viver já é um ato político. Então, com essa peça, nós queríamos trazer dentro da política a conscientização, porque a saúde mental é algo banalizado. E, com essa peça, a gente quis externalizar essa tortura mental, que era um sofrimento mental que a pessoa estava trazendo. A única diferença é que a gente pôs para fora, externalizou. 

Mas, dentro da peça que nós imaginamos dentro da nossa cabeça, era só o personagem conversando com ele mesmo, uma conversa no espelho. Isso ficou claro? Não sei, porque a gente também, de uma forma política, não quis explicar a peça. Porque se eu for lá te explicar que a peça é sobre isso, eu ia te dar um direcionamento. Mas, na sua vivência, na sua vida, na sua rotina, você pode ter uma análise dali que vai te abranger dentro da sua situação socioeconômica, sua situação racial, de várias outras formas. Então, o objetivo da peça foi deixar aberta essa porta, para que tenha várias interpretações para a melhor que adequar na sua realidade, ou na sua defasagem, para que possa reverberar em você e trazer uma reflexão mais intimista para o nosso espectador. 

SAMARA —  Eu ainda tô encontrando qual é a minha arte e qual que vai ser o caminho que eu quero seguir. A arte e a política andam juntas pois é uma forma de mostrar para as pessoas que pode atingir uma grande massa. E tem muita gente que sabe fazer isso com maestria. 

Eu quero sim fazer algo, mas por enquanto não, já eu ainda tô aprendendo muita coisa e não quero me exaltar nesse processo. Eu preciso aprender mais, quero entender qual é a minha arte para poder entregar ao público. Talvez seja algo mais sobre mim, do que sobre a sociedade, pode ser isso também, eu ainda tô encontrando. Então, por enquanto ainda não penso em fazer algo político ou social. Não agora. 

NICK —  Eu acredito que dentro da minha vivência, a arte denuncia a política de uma forma única, eu como uma pessoa que cresceu com artistas, e cresci no movimento do hip hop e da cultura de rua, sei o quanto a arte tem um papel crucial na política e no movimento social. E é isso que eu busco com a minha arte, trazer sempre temas políticos, polêmicos e tocantes, que são necessários de serem abordados. Pois é dessa forma, trazendo esse pensamento, essa reflexão, que de pouquinho e pouquinho podemos mudar a realidade em que vivemos hoje.


Yandara Cristina

Olá! Meu nome é Yandara Cristina, sou estudante de Artes Cênicas e minha comida favorita é macarrão. Espero um dia ser uma grande pessoa de coração maior ainda.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *