Bruno Medeiros
Vamos começar pela sala de cinema: sessão cheia, com vários pais e seus filhos (muitos deles impacientes para o começo do filme). A partir do momento em que o longa começa, a impaciência apenas aumenta. O vaivém de empresas que financiaram a obra, de estúdios e mais atordoa uma criança sentada atrás de mim. A agonia dela só é piorada com os sons do filme e dos personagens, que parecem estar cientes da quantidade de nomes na tela que impedem o início do filme. Essa mesma criança dirá que quer sair do filme lá pela sua metade. E, finalmente, imagens, personagens, música: começa Arca de Noé.
Esse começo é provavelmente o primeiro e único momento em que as cenas musicais carregam algum peso. Outros momentos com canções, por mais importantes que sejam na narrativa, vão e voltam, são efêmeros. Não há tempo suficiente para processar as sequências musicais, seus espetáculos sonoros e visuais, nada. Ficam ali por alguns segundos até que voltam a ser a trilha sonora da trama principal, que é totalmente banal. É como se Vinícius de Moraes fosse um espectro que assombra a própria obra e ela fosse obrigada a se inspirar no trabalho do poeta. Não é um filme que se sustenta em Moraes ou em sua suposta brasilidade — ele se sustenta em ideias falhas.
O longa pretende se encaixar dentro de uma onda de animações “estilizadas”. Exemplos de obras que se encaixam nessa classificação são a franquia Aranhaverso, a série Arcane e Gato de Botas 2: O Último Pedido. A tal “estilização” do filme se dá de forma grosseira, como se pegasse a ênfase textural do segundo Gato de Botas e a lambuzasse com a de uma animação da Pixar dos anos 2000. Com isso, na prática, adicionam-se dois “diferenciais” terríveis: uma dessincronização labial totalmente ineficaz e uma taxa de quadros oscilante que é majoritariamente reduzida, mas que nos momentos de aumento se torna verdadeiramente grotesca. Parece que houve uma erupção em seu tecido animado. É uma somatória tenebrosa complementada pela já mencionada assombração de Vinícius de Moraes, falta de peso da narrativa e personagens isentos de personalidade.
Não sou desfavorável a novas formas de pensar a animação, mas não justifico qualquer coisa por ser “diferente”. Inovar na animação é uma urgência, mas não podemos confundir uma combinação esdrúxula de estilos estadunidenses com “diferenciais” e devemos observar cautelosamente essas brincadeiras com a técnica. O que essa dessincronização labial nos diz sobre a tal “ilusão da vida” e a ruptura com o modelo ocidental de animações, sobre novas maneiras de enxergar e expandir esse ponto chave na animação? A emulação de um estilo é mesmo uma cisão na técnica e estética ou apenas covardia, um jeito de não assumir sua própria forma e suas limitações e mascará-las com outra forma e outras limitações? São questionamentos fundamentais para que a animação possa se desenvolver seriamente enquanto expressão artística, mas que estão longe de ser devidamente explorados. O problema é mais profundo.
A animação ainda é vista de modo parnasiano, a tal máxima da arte pela arte, e a tal animação “estilizada” escancara isso como nenhum outro momento na história. Não consegui passar de dois episódios de Arcane por ser uma série que fala a linguagem do live-action e só se justifica como animação pelo seu visual “estilizado” e a técnica que foi usada para criar isso. O segundo Aranhaverso fala a linguagem da animação “estilizada”, e é um vocabulário nefasto, marcado por excessos inconclusivos que estão lá apenas para um espetáculo enjoativo, uma batalha sangrenta de estilos “diferentes”. Aplicações boas desse estilo existem (veja Gato de Botas 2: O Último Pedido), mas são aplicações que usam da “estilização” como seu ponto de partida ou sua justificativa para aquilo ser animação. No final das contas, tudo acaba voltando à técnica e, nesse caso, seus desusos. Sejam eles excessivos ou mal aplicados. E o buraco segue profundo.
Voltando à Arca de Noé: alguns dias antes de assistir, o Instagram me expôs imagens da pré-produção do filme. Dá a entender que os personagens foram estudados cautelosamente, que partem das mais diversas inspirações, e que, acima de tudo, é uma obra tecnicamente bem pensada, bem produzida, avançada. Pode ser uma abominação totalmente vazia, mas tem esse lado técnico. Uma técnica que jamais conseguiria se sustentar num projeto desses, já que tudo ao seu redor é tão terrível. Mas é o que mais vale para muitos animadores e espectadores, uma parte que justifica um todo injustificável. É uma das formas mais anti-intelectuais de se pensar a animação.
Concluo essa crítica com mais algumas anedotas da sala de cinema. Num dado momento da sessão, minha namorada chamou minha atenção para um grupo de crianças que estava rolando no chão do cinema, no vão colossal entre a primeira fileira e a tela. O fato de que uma brincadeira dessas estava acontecendo demonstra o fracasso total do filme para seu público-alvo (que, aliás, seria um tópico para outro texto). Para piorar a situação, as incontáveis piadinhas envolvendo a contemporaneidade (referências a redes sociais, influenciadores, e até mesmo a pautas sociais) só foram bem recebidas pelos pais, que riram modestamente por alguns segundos enquanto as crianças ficavam em completo silêncio.
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