
Mesmo com as sinuosas árvores que faziam sombra quase durante todo o dia na Rua dos Andradas, Antenor sentiu sob seus pés que os paralelepípedos já desgastados pelo tempo estavam quentes como costumavam estar no verão. Já era final de abril e o inverno portoalegrense costumava, apesar do clima sempre abafado da capital, dar suas caras com brisas mais frescas. Esse ano – ou melhor, estes últimos anos – parecia diferente, pensou.
Olhou para seus pés. Constatou que seus sapatos, quase sempre lustrados quinzenalmente pelos remanescentes jovens engraxates, que trouxeram a profissão analógica ao século XXI, estavam velhos. Havia um buraco no solado de um deles. Precisava trocá-los, quando chegasse o dinheiro.
Fez o sinal da cruz quando passou pela Basílica de Nossa Senhora das Dores. O sol estava à pino, decretando o meio-dia. Nessa parte da rua, sem árvores, ele incidiu sobre sua cabeça de forma bem menos piedosa que as lágrimas de Nossa Senhora. Uma gota de suor pingou ao mesmo tempo que suas mãos se abaixaram no cotidiano movimento de fé. Rumou para o caminho que fez, religiosamente, nos últimos 40 anos de sua vida, mas não sem antes cumprimentar Libório, amigo e companheiro de comércio, que fielmente cuidava do Beco dos Livros, sebo pacato em frente à Casa de Cultura Mário Quintana. Bah, esse calor não tem quem ‘guente, saudou o amigo, e o ventilador velho e empoeirado que lhe acompanhava.
Tirou as chaves do bolso e adentrou o estabelecimento ao lado. A porta abriu, dando às boas vindas com uma bufada de ar levemente mais fresco, que conservava da noite anterior. Dirigiu-se para trás do balcão de carvalho, onde retirou uma placa de rua que dizia solenemente: “Conserta-se guarda-chuvas. Aberto até às 19h”. Posicionou-a tradicionalmente em frente à porta. Suspirou. O suor insistia em descer pela sua fronte, cansando-o. Já não era mais tão jovem, e esse calor, não sabia porque, causava dor nas suas costas. Por isso, tão logo limpou o rosto com o pequeno lenço de bolso, bordado com as letras A. Z. – herança de seu falecido pai -, sentou numa banqueta atrás do balcão.
Repousado seus ossos, começou o trabalho. Já há dois dias trabalhava remendando a seda de um guarda-chuva vermelho antiquíssimo, com o cabo de mogno onde se talhara uma pequena flor de hibisco, lustrado de cera. Pertencia a Carmen, matriarca de uma das famílias quatrocentonas que habitavam os apartamentos espaçosos do Centro Histórico de Porto Alegre. Ela, de cabelo sempre imóvel pelo laquê, de roupas finíssimas e passada lenta, suplicara à Antenor, seu fiel escudeiro quando o assunto era sombrinhas e guarda-chuvas.
Antenor, querido, tu me consertas esse até sexta, que está marcando chuva esse final de semana, e no temporal da semana passada ele quebrou. Pago adiantado pra ti, que já é final do mês, e essa sombrinha é especial, vês como ela tem a madeira antiga e a seda que não se fabrica mais no Brasil. Era de mamãe, sabes.
O pedido foi feito na segunda-feira, já era quarta-feira, e os aros que sustentavam a seda-que-não-se-fabrica-mais-no-Brasil causaram a Antenor dor de cabeça. Estavam enferrujados no ponto de inflexão, o que ocasionou a quebra de três deles, teorizou o senhor. Ainda tinha que fazer o serviço de costurar, magistralmente, o tecido fino sem um rasgo – ele sabia que Carmen não gostava de imperfeições em suas sombrinhas, ou em qualquer coisa de seu vestuário. Pegou cola e agulha e, corajoso como um guerreiro que vai à batalha, ajeitou os óculos. Era seu embate final.
Antes, reparou nas suas mãos. As finas cicatrizes nos dedos, frutos de cortes traiçoeiros que lhe faziam os aros metálicos dos guarda-chuvas, eram lembranças de um tempo que há muito havia expirado. Quando aprendiz de seu avô, ali no mesmo local, sangrou muito seus dedos quando tentava, pela força, encaixá-los ou parafusá-los com os minúsculos parafusos. Seu avô, com óculos circulares que, pensou Antenor, pareciam os dele agora, ria.
Guri, não fazes à moda ‘miguelão’. No nosso ofício, nós somos como a chuva. Não pode ser forte demais, tem que ser com parcimônia para não causar estrago. Se a chuva fez o favor de cair com força, nós fazemos o contrário. Nossas mãos precisam ser mais leves que o minuano.
Foi mareado por essa lembrança que, contrariando às décadas de experiência e o conselho do avô, furou o dedo com a agulha. Assustou-se com seu erro. Já estava velho, mas no trabalho nunca mais tinha errado. Uma gota de sangue precipitou-se sobre a seda vermelha, de similar modo que fez a chuva na semana passada. Profanando o brilho do tecido com um escarlate visceral, a gota dissolveu-se levemente nas fibras importadas. Antenor não gostou disso, lhe pareceu um mau presságio, um desconforto sutil buliu o seu estômago.
Mas, acostumado ao trabalho, logo deu jeito de resolver o problema. Estancou o pequeno corte e continuou, com a serenidade positivista que os anos lhe agraciaram. Já era quase três da tarde quando decidiu ligar o rádio. Quando girou o botão da radiola antiga, os pés de Libório também tocaram o chão de sua lojinha. Antenor, esqueci de te dizer, preciso que faças um trabalhinho pra mim, coisa pouca, nem te esquente. O guarda-chuva do meu guri quebrou, e ele não queria comprar outro, gosta bastante desse, me diz quanto fica que te pago amanhã.
Colocou em cima do balcão. Os olhos atentos de Antenor já diagnosticaram o problema de longe: estes guarda-chuvas mais novos geralmente davam problemas no dispositivo de abertura. Era só encaixar novamente o mecanismo, que zás, estava pronto. Isso é pouca coisa, Libório, termino hoje mesmo. Fica vinte pila. O amigo sorriu, e continuou a conversar. Na rádio, noticiava-se o aumento do calor e da chuva nos próximos dias, mas nenhum dos dois senhores chegou a ouvir: distraíram-se falando das eleições que aconteceriam esse ano.
Antenor não se preocupava muito com política, porque sua vida estava ali naquela rua. Gostava de estar entre a livraria de Libório, a Basílica e o quartel do exército que vinha mais à frente. Sentia-se protegido pela Nossa Senhora, pelos livros velhos e os soldadinhos com os quais cumprimentava daquele jeito simpático de sempre ao fim do expediente. Fé, razão e a força dos homens o guardavam com o voar dos dias. Era só quando pegava o ônibus de volta para sua casa, no bairro Fátima, que pensava em política.
Pensava no prefeito, e que ele não devia, provavelmente, passar pelo engarrafamento de todos os dias quando retornava à sua casa. Os ônibus também não eram os melhores, apesar da resignação bondosa de Antenor sempre considerar tudo bom e suficiente, e estavam quase sempre cheios. Apesar de idoso, raramente conseguia um assento livre. Muitas vezes, quando chegava em casa, o jornal na televisão já havia acabado, então ia dormir, para recomeçar a labuta no outro dia. Mas, fora isso, não lhe passava muito pela cabeça essa coisa de política. Votava no candidato que tinha o jingle mais legal na rádio. Para ele, isso sempre bastou.
O relógio da parede já marcava quinze para as sete quando Libório terminou as duas encomendas. Neste dia, não recebeu nenhum outro pedido. Já estava acostumado com a falta de movimento de seu comércio, e até se considerava vitorioso por ter resistido nestes últimos anos. Os guarda chuvas, agora mais baratos, quebravam mais rápido e logo eram substituídos por outros. Ninguém mais tinha tempo para conservar os objetos, senão idosos ou aqueles que têm apego sentimental pelo instrumento. E também não se podia mais esperar um dia ou dois pelo conserto: hoje chove, amanhã não chove, depois de amanhã tem temporal. Porto Alegre não era mais a mesma, ele pensava.
Mas sabia que esse era o inevitável fluxo do progresso adentrando as hastes das sombrinhas e guarda-chuvas. E, para ele, tudo bem, contanto que pudesse pagar as contas no fim do mês. O dinheiro era pouco, mas dava. Só não dava para sapatos novos, como ele novamente notou no caminho de volta pra casa. E pelo visto, não ia poder engraxá-los na próxima semana também, concluiu. Ao entrar no ônibus, uma gota de água caiu em sua testa. Começava a garoar. Estranho, ele pensou, não avisaram no rádio que iria chover.
A garoa engrossou de madrugada, e no outro dia, refazendo novamente sua procissão diária da Rua dos Andradas, o nome do pai do filho e do espírito santo foi feito apressado em frente à Igreja. Chovia muito. Assim foram as próximas horas, mas a chuva deu uma trégua no final da tarde. Carmen veio buscar sua sombrinha às duas. Libório lhe trouxe um chimarrão às quatro, falou da chuva. Pegou o guarda-chuva de seu guri e falou que ia embora mais cedo, que hoje ia ter trânsito e não valia a pena manter a livraria aberta se não tinha vivente que se encorajasse a sair nesse chuvão, disse.
Antenor fechou mais cedo também. Pegou o ônibus pra casa, num trânsito terrível na Marechal Osório. Quando passou pelos viadutos perto da rodoviária, pôde ver que a água se acumulava já em grandes poças. Viu ali os desabrigados, que se amontoavam com suas caixas de papelão já frustradamente molhadas. Coitados, pensou Antenor. É uma chuvinha e já perdem tudo que têm.
Chegou em casa ainda mais tarde essa noite. Achou que a chuva daria uma trégua. Teve um sono agitado, acordou mais cedo do que devia e ligou o rádio. A estação noticiava alerta da defesa civil, porque a chuva não iria parar. Antenor pensou em chegar mais cedo no trabalho: com o vento e a chuva, com certeza novos guarda-chuvas precisavam de conserto. Vestiu-se e foi, apressado, ao ponto de ônibus.
Durante a noite, chovera tanto que espantou-se com a água que entrou pelos seus sapatos quando pisou, sem querer, numa poça que já lhe cobria o pé. Ficou preocupado. Quando passou novamente perto da Arena do Grêmio, a água se acumulava cada vez mais. Será que cancelam o jogo de hoje, pensou.
Na rua dos Andradas, os carros já chafurdavam um pouco na água acumulada, e em sua caminhada teve que tomar cuidado para não chegar ainda mais encharcado ao trabalho. Assustado, não fez referência à Nossa Senhora das Dores, porque distraiu-se observando uma movimentação incomum perto do quartel. Com estranheza, viu que hoje Libório não havia aberto seu comércio. A água aumentava na rua. A chuva não parava. Seus sapatos, furados, já estavam ensopados.
Contrariando sua expectativa, nenhum cliente apareceu. A angústia aumentava dentro de seu peito, assim como a água nas ruas. Viu os paralelepípedos da rua em frente a Casa de Cultura Mário Quintana banharem-se de um lodo marrom, que dificultava a passagem de carros e motocicletas. As horas passaram voando. Quando fez o caminho de volta pra casa, as costas doíam-lhe, os pés estavam gelados por ficarem úmidos o dia todo. Começou a tossir. Embaixo dos viadutos, já não viam-se pessoas, porque a água alagara todo o local. Boiavam alguns itens, e um sofá velho reinava solitário na crescente inundação.
A rua de sua casa, no bairro Fátima, já era quase impossível de transitar. Ao descer do ônibus, percorreu todo o caminho com água nos tornozelos. Mas a chuva não ameaçava sua casa. Sorte que ela era construída em um nível um pouco acima da rua, pensou aliviado, e a água não chegara ainda perto da sua porta. Essa noite conseguiu ver o jornal, o alerta para o bairro Mathias Velho, vizinho logo ao seu, era reforçado pelo governo e defesa civil. O Rio Guaíba tinha risco de transbordar, ele ouviu o apresentador dizer de forma contundente, mas que não convenceu Antenor. Onde já se viu um rio daquele tamanho inundar?
A tosse aumentou. Quando foi dormir, acordou com uma goteira que lhe pingou na testa. Assustado, viu que a água começava a entrar pela porta da frente. Era perto das seis da manhã. Fez o sinal da cruz, que estava em atraso para Nossa Senhora das Dores, pediu que ela se apiedasse dele. Naquele momento, sua serenidade foi arrancada de seu coração e instalou-se, sobre seus ossos já velhos, um pânico que nunca sentira antes. Não sabia o que fazer, ligou o rádio. Ouviu que já começavam os resgates nos bairros perto de Canoas.
Arrumou, numa mala velha, tudo que podia, e vestiu os calçados ainda encharcados do dia anterior. Vestiu as meias ainda molhadas, porque não tinha tido tempo de lavá-las. Quando ouviu o radialista dizer que iniciavam-se as operações no bairro Fátima, a água já apossava-se de sua cozinha. Demoraram duas horas para ver o primeiro bote do Corpo de Bombeiros.
Carregou sua maleta velha e triste e o pequeno rádio dentro do pequeno barco, já com outros três vizinhos, e quando ia embora dali, para um local seguro, como disseram os oficiais, só conseguia olhar para sua casinha, desaparecendo no horizonte, com a água que não parava de subir.
Transbordou o Guaíba, tu viu, Antenor? Disseram que a contenção não suportou a força da água, falou sua vizinha, abraçada à filha. Ele não conseguiu dizer nada mais. Suas costas doíam, a tosse havia piorado, ele se sentia febril. O corte em seu dedo, que fizera há três dias, curiosamente reabriu. Sangrava um pouco, e com o seu sangue misturavam-se às gotas da chuva, que não tinha jeito de parar.
Antenor e seus vizinhos foram levados a um ginásio no extremo leste da capital, onde a água não ameaçava invadir. Quando seus pés finalmente pisaram em um chão seco, agradeceu aos soldados primeiro, e imaginou se algum deles já havia lhe dado boa tarde quando passava na Rua dos Andradas. Depois, delineou em seus pensamentos uma prece rápida a Nossa Senhora das Dores. Arrastou sua mala a um canto, ficou ouvindo o rádio o tempo todo.
Não concebia direito o que estava acontecendo, mas sabia que era uma tragédia. Sabia que era grande, e que agora pouco importava seus guarda-chuvas ou suas mãos que traçavam o ofício com delicadeza, porque nem toda delicadeza do mundo poderia salvá-lo da força que destruía a cidade lá fora. As cidades, segundo ouviu o apresentador do programa dizer. Porto Alegre estava, grande parte, embaixo da água.
Pensou em Libório, em seus livros, em como ele haveria de recuperá-los, caso a água adentrasse o sebo. Ele devia estar seguro, no entanto, morava longe do Centro Histórico. A preocupação com seu amigo era interrompida sempre pelo choro de alguma criança, pela conversa dos voluntários, pela chegada de cada vez mais gente no ginásio. Pela sua tosse que se tornava cada vez mais dolorida também. Chegavam doações para aqueles que perderam suas casas pela inundação, e nelas conseguiu um sapato novo, e abandonou os velhos furados. Conseguiu também meias secas, o que lhe confortou um pouco. Adormeceu ainda com o rádio ligado.
Quando acordou, o ar lhe faltava e seus pulmões doíam. O clima tinha esfriado e ele não trouxe, em sua mala velha, nenhum casaco. Conseguiu um na fila de doações, mas não foi suficiente para aplacar-lhe os calafrios. Começou a tossir sangue. Buscou ajuda da equipe médica, que lhe atendeu com gentileza, mas não foi capaz de ser encaminhado a um hospital, pois se negou a passar na frente de duas mulheres que já aguardavam o transporte. Resignou-se bondosamente, como fez durante toda a sua vida, e tornou a ouvir seu rádio.
Passaram-se os dias. Semanas, até. Antenor acostumou-se com o cotidiano do ginásio, recebeu erva-mate, fez alguns amigos que ouviam diariamente as notícias do rádio com ele e até lhe arranjaram pilhas quando o mesmo teimou em falhar. Sua dor nas costas piorava, não podia andar muito, mas manteve-se estável. Não queria causar mais problemas para os voluntários e os responsáveis do exército que, como ele bem podia perceber, estavam exaustos.
Pensava no seu caminho diário até sua lojinha. Nas sinuosas árvores que gentilmente traziam sombra ao trajeto, lembrou-se do calor escaldante que fazia há menos de um mês. Do sol, das lágrimas de Nossa Senhora das Dores, do guarda-chuva de Carmen, dos óculos de seu avô. Foi caminhando pela Rua dos Andradas, sentia os paralelepípedos quentes sob os seus pés, olhou seus calçados, estavam furados, precisava comprar novos, pensou. Encontrou Libório, deu boa tarde, comentaram sobre o calor de novo, ainda bem que a chuva passou, concordaram.
Carmen veio pedir para consertar sua sombrinha vermelha, e ele espetou o dedo, manchando o tecido. Não foi problema, limpou enquanto tomava um chimarrão com Libório, ao final da tarde. Pingou uma gota de suor na sua testa. Pingou uma gota de chuva na sua testa. Pingou uma gota de sangue. E nada mais.
Quando o sol reapareceu na rua dos Andradas, a única loja que não foi reaberta para ver os estragos que a água causou foi aquela, entre o Beco dos Livros e a Basílica Nossa Senhora das Dores. Libório voltou à livraria e constatou, com tristeza, que perdeu muitos livros. Estranhou a ausência do amigo Antenor, ao ver a loja fechada. Não conseguira ter mais contato com ele desde quando havia fechado sua loja mais cedo, há pouco mais de um mês. Dentro do estabelecimento, a placa onde lia-se “Conserta-se guarda-chuvas. Aberto até às 19h” inchou e já apresentava sinais de mofo. Os aros e as agulhas enferrujaram.
A água suja se acumulava em poças barrentas. Não havia mais sombrinhas ou guarda-chuvas por ali, notou o estranho que reabriu a loja após algumas semanas. Não havia mais chuva no céu. Mas ainda havia a água, que demoraria pra baixar. Ainda havia delicadeza no mundo, embora não mais pelas mãos de Antenor.
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