Para onde foram as laranjas?

Barraca de suco de laranja em frente à Igreja Santíssima Trindade é o único indício do fruto que popularizou uma das festas mais tradicionais de Florianópolis

Jéssica Schmitt e Matheus Alves

Fotografia analógica da Festa da Laranja, ano desconhecido. A festa tomava toda a região da praça conhecida atualmente como Pida, e contava com diversas barracas de comida e brinquedos de diversão. (Foto: Arquivo histórico da Paróquia Santíssima Trindade)

O inverno está chegando. Como sei disso? Talvez o frio agonizante dos últimos dias possa ser uma pista — as duas meias, as camadas e mais camadas de roupas, a fumaça quente quando expiro o ar e, por fim, a gélida brisa que me corta de fora a fora ao sair na rua. Há algo a mais. Passando de ônibus pela Rua Lauro Linhares, em Florianópolis, logo em frente à Praça do Pida, vi uma multidão tomar conta do espaço em meio às árvores, entre inusitadas barracas de comidas, brinquedos infláveis e o cheiro ímpar de quentão. Era óbvio, a Festa da Laranja estava começando. 

Agora é questão de tempo para o inverno chegar de vez, afinal, a festa — que faz parte do circuito de festividades do Divino Espírito Santo, uma das manifestações católicas mais famosas da Ilha de Santa Catarina — marca também a chegada da nova estação. Durante a novena que se inicia na sexta-feira (6), antecedendo o Dia de Pentecostes (8), a Praça Santos Dumont se transforma para receber a Festa da Santíssima Trindade, que há mais de um século é celebrada pelos membros da Paróquia Santíssima Trindade e pela comunidade local. 

As barracas de cocada, quentão, crepes, pinhão e mais uma infinidade de quitutes juninos surgem em frente à igreja e em sua propriedade, atraindo os jovens universitários, famílias, comunidades do bairro e fiéis de diferentes regiões da cidade. A notícia se espalha rápido na boca do povo — a Festa da Laranja chegou. Curiosamente, esse apelido ficou popular entre os locais, mas não há laranjas a serem vistas em lugar algum. 

Chegada das laranjas para a festa, 1984. (Foto: Arquivo da Paróquia Santíssima Trindade)

“Certamente, vocês já ouviram esse nome por aí porque na ilha se produziam muitas laranjas”, conta o Frei Rivaldo Vieira, padre ordenado da paróquia. A partir de registros históricos organizados no acervo da igreja, é possível afirmar que sim, havia muitas laranjas durante os dias de festa. Ainda em seus primeiros anos, a festividade passou a receber diversos comerciantes do fruto, que era encontrado em abundância no bairro Trindade e arredores. No ano de 1955, o evento finalmente passou a ser reconhecido oficialmente por seu nome popular, vindo a se tornar a maior festividade de Florianópolis. 

Tudo começou bem antes dos grandes empreendimentos residenciais, supermercados, parques urbanos e centros comerciais que hoje são característicos do bairro que, outrora, era conhecido como Sertão do Córrego Grande. A festa era uma oportunidade para os fazendeiros e moradores da região venderem suas últimas safras do fruto, que eram levadas até a praça em frente à paróquia da Trindade e usadas em pencas para enfeitar as barracas feitas de bambu.

Barracas enfeitadas com laranjas, junho de 1978. (Foto: Arquivo da Paróquia Santíssima Trindade)

A chegada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 1960, fez com que o desenvolvimento do bairro acontecesse rapidamente e sem precedentes. As fazendas, sítios e chácaras do entorno, além das casas dos antigos moradores, perdeu lugar em meio à urbanização da região. Aos poucos, as laranjas foram se tornando cada vez mais raras, até que sumiram de vez. “Na década de 1990 não há mais registros iconográficos de laranjas, apenas no nome da festa”, comenta Susana Madruga, arquivista na Paróquia Santíssima Trindade. 

Com o fim das laranjas, a celebração também tomou novos rumos. Segundo o Frei Rivaldo, a festa era muito mais do que uma comemoração religiosa. A praça que hoje conhecemos como Pida antes era lotada de brinquedos de parques itinerantes, tinha shows musicais, uma variedade de barracas e carrinhos de comida. A grandiosidade do evento trouxe com si a insegurança por conta do grande número de visitantes, que chegou a ultrapassar a marca de 200 mil pessoas (e 600 mil laranjas). O aumento no índice de violência causado pelo crescimento desenfreado da festa fez com que a igreja tomasse uma atitude. 

A partir de 2009, o então pároco Frei Cácio Roberto Petekov estipulou, junto com a comissão de festa, que ela seria realizada somente no pátio da Paróquia, o que acontece até os dias atuais. O objetivo era “torná-la mais religiosa, mais familiar e mais característica como uma festa da igreja, e não tanto mundana”, comenta Frei Rivaldo. Ele acredita que trazer a festa para dentro da igreja possibilitou recuperar as tradições culturais açorianas que originaram o evento, além de garantir que os ritos católicos voltassem a ser o ponto central — assim, a festa passou a ser chamada Festa da Santíssima Trindade. 

Ainda existem resquícios do que antes foi a famosa Festa da Laranja, como algumas barracas terceirizadas com guloseimas, como cocadas e coquinhos queimados, churros, pastéis, quentão e crepes na praça em frente à paróquia. Mas a farra acontece mesmo no pátio da igreja. “Hoje, é uma festa que já não tem mais nenhuma característica da laranja”, completa Rivaldo. 

Em 2018, as comemorações da Irmandade do Divino Espírito Santo foram tombadas pelo Conselho Estadual de Cultura como patrimônio cultural imaterial de Santa Catarina. Apesar de ter mudado oficialmente de nome e propósito, a Festa da Laranja nunca deixou de fazer parte das conversas triviais sobre os eventos juninos quando o frio se aproxima. Durante a nova programação, ocorrem festejos como a Missa com o Cortejo Imperial e com o Cortejo Português, além do almoço festivo e o corte do Bolo do Divino — famoso bolo preparado pelos fiéis, que escondem mensagens de fé dentro das fatias. As tradições religiosas e culturais se mantêm e refletem a origem da Igreja Santíssima Trindade, que teve seu início em 1855 com influência da cultura açoriana. 

O último vestígio das laranjas que deram o nome popular à festa. (Foto: Jéssica Schmitt)

Na quinta-feira (12), na primeira hora da manhã, o Caderno Cultural Expressões visitou a paróquia a fim de desvendar o mistério das laranjas. Ainda cedo, o clima já era de agitação nos preparativos para recepcionar o grande público, que começaria a chegar no fim de tarde. Encontramos diversas figuras caricatas pelo caminho durante nosso tour pelas instalações da igreja, que nos contaram causos, histórias e tradições do catolicismo. Todo eles estavam ali por um motivo: o trabalho de montar as barracas, preparar as decorações, organizar as vendas e fazer as comidas é realizado por membros de congregações ligadas à igreja matriz da região — a Paróquia Santíssima Trindade.

Pães da promessa, feitos em formato de partes do corpo humano, como mãos, pés e cabeça, e da Santíssima Trindade. (Foto: Jéssica Schmitt)

Na noite anterior à nossa visita, foram 1230 pastéis vendidos. Era esperado que fossem ainda mais por conta do Dia dos Namorados, nos contou um grupo de mulheres em sua pausa para o café. Dona Genir, senhora que fazia parte da pequena aglomeração fora da cozinha, disse frequentar a paróquia há mais de 30 anos. Atualmente, é responsável pela barraca dos Pães da Promessa, feitos de uma massa levemente adocicada, e são oferecidos ao Divino Espírito Santo como pagamento de promessa, sendo benzidos pelo padre e, então, partilhados. “Essa é uma tradição de fé dos nossos antepassados que continua presente na festa”, afirma. 

Neste ano, o tema da festividade foi o Jubileu Peregrinos de Esperança — escolhido pelo Papa Francisco e que marca um período de graça extraordinária, empatia, misericórdia e renovação de fé. Assim, em 2025, assim como nos anos anteriores, o valor arrecadado é convertido em ações de caridade às instituições mantidas ou que recebem apoio da igreja matriz, como também restaurações e obras. 

Casal Festeiro, João Navegantes Pires e Isaura Comicholli Pires, em frente a uma barraquinha com uma penca de laranjas, ano de 1960. Todo ano um novo Casal Festeiro é anunciado, e estes recebem uma missa especial e são os convidados de honra da festa. (Foto: Arquivo da Paróquia Santíssima Trindade)

A noite de encerramento, no último domingo (15), foi marcada pela Solenidade da Santíssima Trindade, contando com um almoço festivo e show de Ivan Cipriani e da dupla Guilherme Botelho e Marquinhos, além de três missas ao longo do dia. Antes mesmo das 20h já não havia mais batata frita, as filas para a cocada eram imensas, a canja de frango tinha evaporado, crianças corriam por todo lado, as cadeiras estavam todas ocupadas e todo mundo aparentava estar com um copo de quentão na mão — o frio nunca foi tão quente. “Para mim, esta é a mística de toda a festa, aglutinar, aglomerar, juntar as comunidades para que elas vivam intensamente o espírito fraterno, o espírito de solidariedade”, afirma o Frei Rivaldo, contente em saber que a Festa da Laranja, que já não tem mais laranjas, ainda atrai multidões.


Matheus Alves

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina, adora moda, fotografia, R&B e gastronomia.

Jéssica Schmitt

Estudante de Jornalismo na UFSC. Meus gostos variam entre literatura nacional, cinema e esoterismo.

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