“Parece que a gente regrediu”: jornalista Fábio Garcia lamenta censura a enredos LGBT+ nas novelas da TV Globo

“Ir contra esses temas progressistas parece ir contra a própria história da telenovela”

Marcelo Pedrozo

À esquerda, o jornalista e produtor de conteúdo Fábio Garcia (Foto: Reprodução/X); à direita, nove beijos homoafetivos de telenovelas da TV Globo e da Max.

Quem acompanha a novela Garota do Momento, da TV Globo, assistiu ao término do relacionamento entre os personagens Guto (Pedro Goifman) e Vinícius (Elvis Vittorio) no começo desta semana. Mas destacar o nome do ator de Vinícius na descrição dessa cena é quase desinformação, uma vez que Elvis Vittorio deixou a trama em março, quando seu personagem se mudou para os Estados Unidos. No capítulo de terça-feira (10), foi através de uma carta que Vinícius pôs fim ao relacionamento com Guto.

Curiosamente, em 2023, esse foi o destino de outro personagem chamado Vinícius em uma novela da Globo: Vai na Fé. Interpretado por Guthierry Sotero, o personagem fazia par com Yuri (Jean Paulo Campos), mas, logo após seu primeiro selinho, Vini saiu da trama para um intercâmbio.

Mas, mesmo antes de ambos os Vinícius deixarem a trama, o público não estava exatamente contente com suas histórias. Uma pergunta ficava no ar: os beijos com seus pares seriam exibidos? A resposta muitas vezes foi não. Em Vai na Fé, beijos entre Yuri e Vini e entre Clara (Regiane Alves) e Helena (Priscila Sztejnman) foram gravados, mas não foram ao ar. A situação se repetiu em diversas novelas nos últimos anos: beijos eram gravados e noticiados, mas nem sempre as cenas apareciam nos capítulos, o que frustrou até os próprios atores.

O Caderno Cultural Expressões conversou com o jornalista e produtor de conteúdo Fábio Garcia, que cobre novelas em um canal no YouTube, sobre esses cortes.

Yuri demorou para se assumir bissexual e aceitar as investidas de Vini. Mas logo após o começo do namoro, Vini foi embora e Yuri acabou a novela com Guiga (Mel Maia) após ela fingir uma gravidez para tentar conquistá-lo e acabar engravidando de verdade. (Foto: Reprodução/Uol)

CADERNO EXPRESSÕES — Primeiro, gostaria de pedir que comentasse um pouco sobre esses casos. Tenho esses na minha cabeça, de Vai na Fé e Garota do Momento, mas não sei se tem algum outro específico que seja interessante comentar também.

FÁBIO — O curioso é que a gente veio de uma linha de que estava se permitindo mais relacionamentos homossexuais em novelas. Só que recentemente, com mudança de gestão da Globo, e a Globo flertando um pouco mais com o público conservador… Porque por estudos eles perceberam que, por exemplo, os evangélicos vão ser maioria daqui a alguns anos. Então já estão tentando convencer um pouco esse público a assistir seus programas. Então, ela tem tomado algumas decisões que parecem ir contra o lado mais progressista que a gente vinha vendo no final da década de 2010, por exemplo.

A gente teve recentemente o caso de Garota do Momento, em que foi noticiado na imprensa que os personagens jovens iam ter um beijo e isso foi avaliado na Globo para ver se eles iam exibir isso ou não. No fim, acabaram exibindo, mas foi um beijo muito discreto, durou menos de um segundo e era na sombra. Foi um negócio meio “ah, é só para agradar o pessoal aí”, mas os outros personagens tinham muito mais destaque, claro. E, recentemente, um dos personagens saiu da novela. Nós não temos informação exatamente se houve censura, porque eles dizem que o personagem estava previsto para sair desde sempre. Então, não temos como afirmar isso. Mas a gente tem alguns pequenos resquícios de algumas pequenas informações que mostram que a Globo está um pouco censurando as coisas.

No caso de Vai na Fé, teve a questão das atrizes do casal homoafetivo virem às redes sociais reclamarem da não exibição de um beijo. Recentemente a gente teve em Volta por Cima o personagem do Rodrigo Fagundes fez um flerte com o personagem heterossexual na novela e isso foi exibido no “cenas do próximo capítulo”. E aí, no capítulo em si, a cena foi cortada. Ele foi às redes sociais também reclamar de censura.

Esse tipo de comportamento que a gente vê. Por parte da Globo, eles dizem que não está acontecendo nada. Recentemente, o Amauri Soares, que é o diretor de programação, falou numa entrevista que “se o autor se censura, nós não podemos fazer nada”, alguma coisa nessa linha. Então, fica o que eles dizem pelo que a gente percebe, mas a gente percebe nesses pequenos detalhes que está rolando sim uma pequena censura e/ou perseguição a temas progressistas ou relacionamentos homoafetivos em novelas.

Antes de Vinícius deixar Garota do Momento, ele e Guto se beijaram, mas em uma cena de um segundo na sombra. (Foto: Reprodução/Uol)

CADERNO EXPRESSÕES — E isso é uma coisa específica dos últimos anos?

FÁBIO — Sim, porque antes da pandemia, tinha momentos em que algum beijo era adiado, eventualmente, mas a gente teve muitas conquistas. A gente teve beijo homoafetivo na Malhação, em novela das seis e novela de época, em novela das seis ambientada no presente, como foi em Órfãos da Terra… A de época foi Orgulho e Paixão.

Então, isso estava sendo um pouco mais frequente, tanto que na época eu trabalhava escrevendo para um site de novela que não existe mais, mas já estava até se conversando de “Ah, vamos parar de noticiar isso, já está virando algo comum”. Antigamente era um acontecimento. Aí, rolou um beijo homoafetivo nas novelas, vira notícia. Se tornou algo comum, felizmente. Só que parece que a gente regrediu.

Em 2018, Luccino (Juliano Laham) e Otávio (Pedro Henrique Müller) já se beijavam no horário das seis, em Orgulho e Paixão. (Foto: Reprodução/G1)

CADERNO EXPRESSÕES — Existe algum jeito de agradar um público conservador sem esse preconceito?

FÁBIO — A impressão que a gente tem é que eles estão tentando agradar um público que já não assiste novela da Globo. E se conservadorismo fosse ponto para atrair audiência, a gente veria que as novelas da Record, que são bíblicas — ou quando são contemporâneas, têm um forte teor religioso —, dariam muito mais audiência do que dão. Então, a conta não bate. Ele está tentando, ele acredita que esse público pode vir para Globo, mas não necessariamente vai vir.

Temos casos de novelas que vão bem de audiência, mesmo com temas progressistas, e casos de novelas que não estão indo bem, mas aí também tem um fator de qualidade. Porque nos últimos anos a Globo tem sofrido um pouco com qualidade nas suas novelas, então, o público está afastando. Então, não sei, lá dentro eles devem imaginar que “Ai, temos que atrair os conservadores, porque tá diminuindo a audiência”, mas, enfim, eles não estão conseguindo fazer isso.

Clara era personagem destaque em Vai na Fé, mas demorou para que ela e Helena pudessem viver seu romance — e mesmo assim, com um beijo bem comportado. (Foto: Reprodução/Gshow)

CADERNO EXPRESSÕES — E isso pode afastar outro tipo de público também, né? Mais jovem.

FÁBIO — O progressista. Há essa questão da preocupação com a renovação do público, que a novela sempre teve isso. E a gente vinha fazendo uma renovação tanto com as novelas infantis do SBT, quanto com a Malhação. Hoje em dia, Malhação não existe mais. Então é um pouco mais difícil você fisgar esse público jovem.

A gente percebe que um pouco esse público acabou sendo atraído por alguns casais de novelas das seis, das sete, até das nove às vezes. É só ver, por exemplo, Garota do Momento, que tem um público muito engajado em torcer por casais, que era um público que antes estava na Malhação. Então, felizmente esse público ainda está aí. Mas ir contra esses temas progressistas parece ir contra a própria história da telenovela, que sempre foi pautada em evoluir progressivamente sobre os assuntos e costumes.

Samantha (Giovanna Grigio) e Lica (Manoela Aliperti) se beijam em Malhação: Viva a Diferença (2017–2018). 

CADERNO EXPRESSÕES — Nos últimos capítulos de Vai na Fé, os beijos homoafetivos começaram a ser exibidos com mais frequência. Mas agora, em outras novelas, a mesma coisa é repetida. É um zigue-zague? Avança um pouquinho, retrocede um pouquinho?

FÁBIO — Sim, e eles têm preferência a mostrar esse tipo de coisa no final da novela ou quando a novela já está consolidada. Porque eles têm muito medo de repetir o que aconteceu, por exemplo, em 2015, com a novela Babilônia, em que logo na primeira semana foi exibido um beijo das personagens da Fernanda Montenegro e da Natália Timberg. Houve um pessoal que reclamou nas redes sociais, mas, enfim, o que as redes sociais dizem também não se reflete tanto na audiência assim, mas a novela teve… No caso, a novela era mal estruturada, então, afastou o público. Até hoje tem gente que acredita que foi por causa desse beijo que a novela desandou e não porque, sei lá, a novela faltava uma estrutura melhor.

Beijo entre Estela (Nathalia Timberg) e Teresa (Fernanda Montenegro) foi exibido no primeiro capítulo de Babilônia (2015). (Foto: Reprodução/Metrópoles)

CADERNO EXPRESSÕES — E agora estava repercutindo bastante Beleza Fatal, da Max, que tem personagens LGBT+ e não tinha esse problema. Isso é por ser uma novela feita para o streaming ou por não ser da Globo?

FÁBIO — Eu acho que são os dois casos, por ser streaming e por não ser da Globo. Por ser streaming, foi uma obra fechada, o autor escreveu toda a novela, gravou e só depois foi exibido. Então eles tinham liberdade de tocar temas. Por exemplo, numa novela da Globo, se alguma coisa está dando errado, já fazem grupo de discussão, já tentam ver o que aconteceu, já reeditam para consertar a coisa.

E Beleza Fatal tem esse benefício de ser do streaming e também, por exemplo, [foi] exibida na TV aberta pela Band. É uma emissora muito menor e sem a visibilidade de uma Globo. Então, [estava] passando lá tranquilamente a novela sem ninguém reclamar nem nada. [Estava] passando inclusive as cenas de sexo com um avisozinho antes, porque [passava] umas 20h30min a novela. E então tem esse fator, não ser da Globo. A Globo acaba sendo muito mais visada, tanto pelo público geral, por ser a emissora mais vista do país, mas também pelo público conservador que gosta de ficar procurando, há muita perseguição de “a Rede Esgoto de Televisão”. A Globo é muito visada por esse público.

Marcelo (Drayson Menezzes) e Átila (Herson Capri) são apenas alguns dos personagens LGBT+ de Beleza Fatal (2025), novela produzida pela Max. (Foto: Reprodução/NaTelinha)

CADERNO EXPRESSÕES — Como você tem percebido a reação do público a essa censura?

FÁBIO — Dá para ver nas redes sociais que as pessoas ficam bastante irritadas quando sai alguma notícia de corte. E inclusive fazem pressão para a emissora, reclamam nominalmente citando o diretor de programação. Em alguns casos, eu acho que esse tipo de reclamação é o que incentiva a emissora a exibir. Eu acredito que, por exemplo, em Vai na Fé ou em Terra e Paixão foi essa essa mobilização virtual nas redes sociais que fez alguém da Globo pensar “talvez seja interessante exibir isso, acho que não vai afetar a novela”. Eu acredito dessa forma, pelo menos.

Kelvin (Diego Martins) e Ramiro (Amaury Lorenzo) burlaram a censura e se beijaram em Terra e Paixão (2023–2024). (Foto: Reprodução/Uol)

CADERNO EXPRESSÕES — Pra ti, como alguém que produz conteúdo sobre novela, como bate essa questão de toda vez ter alguma notícia nesse sentido?

FÁBIO — Ah, é bastante cansativo, na verdade. Porque eu acompanho novela há muito tempo. Então, eu acompanhei muito como isso foi se formando. Sou da época ainda que as pessoas estavam torcendo para rolar o beijo na novela América, que foi gravado e não foi exibido por determinação da Globo. Aí é cada aproximação, cada personagem LGBT+ que ia aparecendo nas novelas, a gente ia torcendo “agora vai, agora vai”. Até que finalmente foi numa novela da Globo em Amor à Vida com o Félix e o Niko. Eles tiveram relacionamento e a partir daí abriu a porteira. E mesmo com pessoas reclamando na internet, em qualquer novela a gente via tanto casais de homens quanto de mulheres, sendo bem recebidos pelas pessoas.

Então, é uma tristeza a gente passar da pandemia e com essa guinada um pouco mais conservadora da Globo, a gente vê que não está tendo uma evolução natural. Os casais não estão se tornando cada vez mais comuns na novela. Voltou a ser aquela coisa incerta de a gente não saber se eles vão se beijar, se eles vão ter um relacionamento desenvolvido, se eles vão ter alguma importância na história, até se eles vão ser retirados. Enfim, é cansativo acompanhar.

A expectativa para o primeiro beijo gay exibido pela Globo era grande. A espera acabou com Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) no último capítulo de Amor à Vida (2013–2014), mas, onze anos depois, as coisas não parecem ter mudado tanto assim. (Foto: Reprodução/G1)

CADERNO EXPRESSÕES — O que falta para a TV aberta, especialmente a Globo, tratar personagens LGBT+ com a mesma profundidade que tratam casais héteros?

FÁBIO — Falta uma coragem de dar um passo além na abordagem das histórias, não ficar só na questão da homofobia. Mostrar personagens homoafetivos, LGBT+, etc. como pessoas equivalentes aos personagens heterossexuais das novelas. Não acredito que a curto prazo vamos ter, por exemplo, um protagonista LGBT+ em novela. Mas espero que a gente venha a ter mais personagens com algo mais próximo do que a gente teve, por exemplo, em Beleza Fatal, em que a gente tinha personagens muito importantes na novela, tanto vilões, quanto mocinhos, que eram LGBT+, tinham suas questões e, além de tratar com o preconceito dos LGBT+, também tratavam de outros assuntos.


Marcelo Pedrozo

Estudante de Jornalismo da UFSC e apaixonado por histórias. Escrevendo um livro como forma de terapia. Editor-chefe do Caderno Cultural Expressões.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *