“Uma Família Feliz” explorou os bebês reborn antes que eles virassem polêmica nacional e projeto de lei

Montes antecipou como performance da família perfeita esconde abismos psicológicos profundos

Alice Maciel

Recentemente, o Fantástico, da TV Globo, conversou com mulheres que colecionam bebês reborn — bonecas hiper-realistas de recém-nascidos. O que começou como curiosidade jornalística rapidamente se transformou em polêmica que chegou até o Congresso Nacional, motivando projetos de lei e dividindo opiniões no Brasil. Neste contexto, revisitar Uma Família Feliz de Raphael Montes ganha uma dimensão quase premonitória. O que parecia apenas um elemento narrativo interessante no thriller psicológico do autor se transformou numa realidade que expõe as fissuras de nossa sociedade.

No livro, Eva vive o sonho de uma vida perfeita no Blue Paradise, condomínio de luxo na Barra da Tijuca. Casada com Vicente, advogado em ascensão, e madrasta das gêmeas dele, ela encontrou na arte dos bebês reborn não apenas uma profissão, mas um refúgio. Esses bonecos hiper-realistas, que ela cria meticulosamente para clientes do Instagram, representam sua forma de lidar com a maternidade de uma maneira controlada e segura. Mas a ironia é cruel: Eva domina completamente a criação de bebês de mentira, mas fica aterrorizada quando descobre que terá um de verdade. A gravidez não planejada desperta não apenas os hormônios, mas também os fantasmas de um passado traumático com uma mãe desequilibrada.

O que torna Uma Família Feliz particularmente inquietante hoje é como Montes antecipou discussões que só agora ganharam o mainstream. A reportagem do Fantástico mostrou mulheres que parcelam bebês reborn em até dez vezes, uma loja em Campinas que simula uma maternidade para o “nascimento” das bonecas e criadoras que faturam até R$ 300 mil por mês. Este fenômeno elucida exatamente o que o autor explorou: fissuras sociais, precariedade emocional e uma profunda necessidade de pertencimento.

No livro, os bebês reborn servem como ponte entre realidade e fantasia, questionando os limites da maternidade e da sanidade mental. Eva vive imersa num mundo onde bebês falsos parecem mais reais que suas próprias emoções, onde a performance da família perfeita esconde abismos psicológicos profundos.

A narrativa em primeira pessoa nos coloca dentro da mente fragmentada de Eva, uma mulher sufocada pelas expectativas sociais. Vicente, o marido aparentemente perfeito, revela-se um machista disfarçado que ajuda apenas quando há plateia. As vizinhas do condomínio, inicialmente solidárias, transformam-se em juízas implacáveis conforme a gravidez avança e coisas estranhas começam a acontecer.

É impossível não pensar nas discussões atuais sobre os riscos de tratar bebês reborn como reais quando acompanhamos Eva navegando entre sua arte e sua crescente instabilidade mental. O autor consegue capturar com precisão a pressão social pela maternidade ideal e como isso pode levar uma mulher ao limite.

Para algumas, trata-se do luto. Mães que perderam filhos e que encontram nos reborns uma forma de seguir em frente sem romper completamente o vínculo emocional. Para outras, o boneco funciona como substituto simbólico da maternidade impossível: mulheres que, por infertilidade, idade, ou condição de vida, não puderam ou não quiseram ter filhos, mas ainda assim sentem o apelo emocional de “cuidar”. Há ainda aquelas que vivem em contextos de isolamento extremo — idosos sozinhos, pessoas com transtornos psiquiátricos, mulheres em relações abusivas ou sem rede de apoio — e que encontram nos reborns uma companhia emocional, previsível, segura.

Em todos os casos, o bebê reborn opera como um espelho: ele não fala, não reage, mas “retribui” afeto de forma silenciosa e total. Trata-se de um amor unilateral que proporciona uma sensação de controle, algo que a verdadeira maternidade, com sua incerteza e cansaço, não proporciona. E esse é justamente o ponto em que Uma Família Feliz se conecta com o fenômeno real: Eva, a protagonista, é uma mulher esmagada pela obrigação de performar perfeição. Quando sua realidade não corresponde ao ideal, ela entra em um ciclo de negação, encenação e, por fim, ruptura psíquica.

Com bebês reborn custando entre R$ 8.400 e R$ 16.800 e projetos de lei prevendo multas de até 20 salários mínimos para quem os usar para obter vantagens indevidas (como furar filas), o Brasil de 2025 transformou a ficção de Montes em documentário social. O autor antecipou não apenas o fenômeno, mas suas consequências: o debate sobre saúde mental, os riscos de tratá-los como reais e o impacto das redes sociais na amplificação desses comportamentos.O livro nos lembra que, às vezes, a ficção mais assustadora é aquela que mais se parece com a realidade. E quando a realidade alcança a ficção, como aconteceu com os bebês reborn, descobrimos que alguns medos autorais não eram apenas imaginação.


Alice Maciel

Estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, apreciadora de documentários e literatura de não-ficção.

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