Jo P. Klinkerfus
Texto produzido na disciplina de Crítica Cinematográfica, sob a orientação da professora Clélia Maria Lima De Mello e Campigotto.

De antemão, peço licença à leitora para que me permita ruminar pelas minhas memórias e sentimentos viscerais antes de chegarmos ao núcleo do gênero literário que esperam encontrar neste texto: uma crítica cinematográfica. O contato que fazemos com obras de arte, com mensagens e narrativas em geral se conectam nas camadas temporais de nossas vidas de uma forma que também acontece com as pessoas que nos fazem ser quem somos. Fui marcada por muitas pessoas, mas hoje falo de uma em particular que encontrei em “n” momentos de minha vida adulta, mas cujo contato no contexto da exibição do filme fez ganhar novas camadas.
Na segunda metade de 2019, aos 18 anos e há poucos meses morando sozinha em uma cidade nova, relativamente grande, conheci muitas pessoas e, talvez mais do que nunca até aquele momento, muitas pessoas trans em todos os lugares que frequentava. Uma dessas pessoas foi introduzida a mim por uma amiga em comum em uma festa. Nos encontramos novamente em outras noites distintas. Mas não pensei muito sobre.
No começo de 2023 nos reencontramos quando, ainda em um espaço noturno, descobrimos que tínhamos passado para a mesma turma de mestrado. Viramos colegas e um lugar novo para mim — a pós-graduação — tornou-se um espaço que desde sempre era ocupado por pessoas trans — pessoas trans negras. Realidades particulares podem ser nossa verdade, não importa o que as estatísticas dizem.
Nunca fomos melhores amigas, mas há uma conexão inegável que esteve presente todos os dias em que dividimos a sala de aula, um tipo de segurança que eu só aprendi a entender muito tempo depois, em momentos de crise. Eu respeitava e admirava sua pesquisa, ela se engajou em minhas falas e juntas parecia haver uma democracia sexual na qual pessoas trans fazem parte da sociedade de forma integral.
Quando meu mundo desabou, eu pedi ajuda e recebi. E, quando a vida não fazia sentido, eu sabia que, pelo menos em sala de aula, eu não estaria sozinha. Em um mundo em que a insegurança e a apreensão ditam os nossos níveis de ansiedade constante, aquele pouco de segurança era um porto seguro turvo. Em um determinado momento, no ápice da minha fragilidade mental, essa mesma pessoa, com um ar de jocosidade, disse algo que me abalou muito. Perdi de certa forma essa rocha. Não nos vimos por meses.Ontem, na exibição do filme Tangerine (2015), do diretor estadunidense Sean Baker, ela chegou à sala de projeção e se admirou em me ver lá. Eu também me admirei, mas acho que consegui esconder minha expressão. Ela se sentou ao meu lado e vimos o filme juntas, mesmo que com uma distância emocional densa. Rimos juntas, arregalamos nossos olhos juntas, fizemos piadas baixinho durante a exibição e, no final, choramos juntas. Após a exibição houve um debate e muitos comentários da audiência — majoritariamente cis — fizeram com que nos encarássemos e percebêssemos que as pessoas ali olhavam para o mundo das personagens Sin-Dee e Alexandra como um mundo estrangeiro: a linguagem, as referências, as estéticas, as violências internas e externas e a melancolia de existir em um espaço constante de possível abjeção social. Para nós a pintura feita por Baker, seu elenco e sua equipe era dolorosa e saborosamente próxima.

Desde então tenho digerido o filme e, com ele, como o fato de ter essa pessoa por perto é algo importante para mim. Nada tão drástico aconteceu entre nós, como no nível de uma traição com cafetões ou a violência física e psicológica de ser atacada com urina humana. Ainda assim, a rusga mal processada (por mim) começou a descer pelo intestino delgado metafórico de meu corpo real a partir daquele momento. O filme acabou e o silêncio desconfortável me lembrou que há conforto possível mesmo no momento mais pesado. Segurei a mão dela. Olhamo-nos quando a luz se acendeu.
Para a leitora que nada sabe sobre a obra ou sobre a vida da autora, o relato acima pode ser enigmático, portanto cabe destacar que o filme de Baker retrata a vida de mulheres trans negras trabalhando na prostituição em Los Angeles, nos EUA, e das pessoas com quem elas interagem. Não costumo falar de mim em minha escrita — mesmo que o ato de escrever não seja nada além de um exercício narcísico no qual falamos de nós mesmas —, mas para fins didáticos cabe indicar que sou travesti, sou negra, conheço emocionalmente os cenários de Tangerine e me insiro dentro de uma carreira acadêmica no Brasil. O filme me tocou mais do que gostaria de assumir, mas aceito que a escrita é o lugar para me tornar vulnerável.
As cores são vibrantes e ao mesmo tempo os cenários são miseráveis, de forma a devorar seus olhos com uma paisagem e estética quente e suja. O título é certeiro ao descrever o lindo laranja do pôr-do-sol que marca o começo da noite — noite essa tão conhecida por nós. Muitas vezes pensava ser capaz de sentir o cheiro de um homem nojento, de um banheiro insalubre e de drogas no ar; o filme é bastante estilizado, mas ainda muito palpável. A música é estridente e combina com a fotografia de uma forma que me agrada muito, fazendo o mundo do começo da década de 2010 ser ainda mais sensivelmente acessível em diálogo com as imagens capturadas pelas câmeras digitais de aparelhos celulares. O mundo é vívido e cruel e as atuações de Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor nos papeis principais carregam o filme — mesmo que ele já consiga fazer isso por si mesmo.
Não sabia nada da obra antes de entrar na sala de exibição. Também sabia muito menos de mim mesma. Saí daquela sala, daquela aula, daquele debate e daquela interação mudada. Não me sinto mais leve, não houve catarse e não acho que um final feliz me espera no final da minha história. Mas saí revigorada na minha crença do cinema como arte e da importância de as pessoas trans estarem juntas, perto e em proteção.
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