Vivendo do personagem: o trabalho como cosplayer nos eventos brasileiros

Artistas do país compartilham experiências em convenções geeks de profissão não tão conhecida

Nanda Honório

Palco das apresentações de cosplay no Stun Game Festival. (Foto: Reprodução Stun Game Festival)

Aplausos. Luzes coloridas. Plateia. Os olhos de uma garotinha sentada nos ombros do pai estão fascinados com a apresentação que acontece no palco. Várias pessoas se caracterizam como personagens de videogames, animes e séries das mais diversas temáticas no Stun Game Festival 2023, no mês de agosto, em Florianópolis (SC), voltado a jogos, danças e ao cosplay. “Essa é uma expressão artística interessante e gosto muito do esforço que os artistas colocaram em suas roupas no evento”, afirma o estudante Vitor Farias, que esteve presente no Stun.

O termo cosplay vem do inglês com a junção das palavras costume (fantasia) e roleplay (interpretação) e, resumidamente, significa caracterizar-se e interpretar personagens fictícios. Em geral, o que mais se vê são personagens que já existem nas histórias em quadrinhos, animações e séries, mas qualquer personagem pode inspirar um cosplay. Além de ser uma atividade consumida e vivenciada pelo seu público como entretenimento, também é realizada pelos cosplayers como uma forma de trabalho. Segundo Jessica Berthi, cosplayer há 13 anos, “já deixou de ser apenas um hobby pra mim”. Atualmente, a artista trabalha de forma autônoma como cosmaker, em que produz trajes, perucas e acessórios para as caracterizações. Essa é a realidade de muitos artistas do ramo, que começam a se caracterizar apenas como uma forma de diversão, mas depois buscam se profissionalizar ou já estão no mercado de trabalho dos cosplays

Jessica Berthi caracterizada como a personagem Puppet, do jogo Five Nights at Freddy’s. (Foto: Reprodução/Instagram Jessica Berthi)

Os eventos relacionados à temática são os locais em que os cosplayers mais atuam profissionalmente. Desde apresentações em palcos a mostrar a sua caracterização para o público ou ao caminhar pelo espaço dos eventos, os artistas são encontrados em grande quantidade. Apesar de serem apresentados ao público como “voltados à arte do cosplay”, muitas vezes, esses eventos não contribuem com o bem-estar nem proporcionam uma experiência satisfatória aos artistas. “Já fui em eventos em Santa Catarina que eram corredores enfileirados, então era impossível se locomover direito e, muitas vezes, existia a possibilidade de um cosplay grande estragar”, comenta a florianopolitana Celes, cosplayer desde 2013, que prefere ser chamada pelo nome artístico. Apesar disso, a artista afirma que, recentemente, há um cuidado maior com isso: “Os últimos eventos que participei foram em locais abertos ou amplos, como o Centro Sul e o Aeroporto de Florianópolis, e a diferença de qualidade é gigante”. Além disso, essas convenções estão se preocupando com os reparos das roupas e acessórios. Segundo Gaerica Amaral, cosplayer por diversão, mas imersa no mundo da produção e dos eventos há anos, “muitos dos eventos estão implementando uma ‘equipe de primeiros-socorros’ para os cosplays, então têm kits de costura, cola quente e pessoas para auxiliar na reparação de alguma customização que estragou”. 

Outra forma de divulgar essas necessidades de mudança nos eventos pode partir diretamente das pessoas que trabalham com as caracterizações. Um exemplo disso é o projeto de Marcelo Fernandes, profissional de Florianópolis, que trata-se de um podcast sobre eventos geeks, cosplays e k-pop (música pop coreana). O Wasabi Cast, apesar de novo, é uma forma de “espalhar a palavra” das caracterizações. “A gente espera ajudar os eventos a ter uma estrutura que acomoda melhor os cosplayers e fazer com que as pessoas conheçam mais sobre esse mundo”, diz.

Algo que afeta também o público, mas principalmente os artistas, é a falta de atrações diversas. “Não só de cosplay vive um evento, ainda estando de cosplay, somos consumidores e frequentadores como qualquer outro, então eu sinto em diversos eventos falta de atrações da cultura geek maiores e mais estandes realmente legais”, comenta Risu, cosplayer há 7 anos. O artista de Florianópolis ainda afirma que “lojinhas” muito amplas não são suficientes, mas exibições de marcas conhecidas do mercado também seriam interessantes, assim como oferecem eventos maiores, como a Comic Con Experience (CCXP) de São Paulo. Por exemplo, a Comic Con de Londres de 2023 ofereceu uma alternativa: “Lá a gente encontra pessoas que têm seus próprios negócios [artesanato, design…] voltados a nichos específicos e estão tentando atrair a atenção do público”, conta Clara Steckert, estudante brasileira que mora na cidade. Uma atração que chamou a atenção das pessoas nesse evento foi a apresentação da história em quadrinhos independente que origina o super-herói “Extraman”, um personagem negro natural de Londres.

Clara Steckert na Comic Con de Londres 2023, ao lado de dois cosplayers. (Foto: Arquivo Pessoal)

Além disso, os preços altos para alimentação e lazer são elevados nessas convenções, o que também prejudica o trabalho dos artistas. “Muitas vezes nem tem muita comida dentro dos eventos e quando tem, são super caras, a mesma coisa para as coisas que vendem”, comenta Gaerica, que acredita que a diversidade de “barraquinhas” deveria ser maior e mais acessível, já que muitos eventos são abertos ao público, ou seja, com ingressos gratuitos. De acordo com a cosplayer de Florianópolis Natalia de Freitas, “nunca vi algum evento tentando solucionar essa questão” entre as convenções brasileiras, o que se diferencia das estrangeiras em certos pontos. Clara relata que na Comic Con de Londres, o empreendedorismo independente se estende desde objetos temáticos até comidas e que são preços conscientes. Além disso, “você consegue bastante coisa de graça lá”, comenta, o que não acontece em eventos brasileiros, muitas vezes.

Apesar de necessitarem melhorias, os eventos destinados aos cosplayers também são uma das principais formas de se conseguir um retorno financeiro. No caso do Stun Game Festival, havia as categorias “Desfile” e “Apresentação”, que davam prêmios em dinheiro para o pódio. “Sempre ajuda, mas nunca é proporcional”, comenta a cosplayer Celes, ao pensar sobre os preços elevados das caracterizações. Ou seja, uma das principais formas de financiamento dos cosplays ainda não proporciona retorno satisfatório. Algo que pode auxiliar no aumento dos prêmios é o patrocínio de órgãos relacionados à cultura, como foi o caso do Stun e a Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes. “A premiação foi relativamente boa comparada ao resto [dos eventos] aqui de Santa Catarina”, completa Celes. Os prêmios dos primeiros lugares dessa edição foram de 600 e 800 reais.

As convenções também possibilitam a visibilidade para pessoas que não costumam consumir o cosplay como arte. “Como era um evento no aeroporto, muita gente passa por ali. Eu estava caracterizada e umas senhorinhas pediram foto comigo”, relembra Celes sobre o Stun. Isso faz com que o cosplay seja mais apreciado e melhor visto por pessoas de “fora da bolha”, melhorando a reputação da profissão.

A interação nos eventos não é só com pessoas que desconhecem esse tipo de arte, mas também com o público que consome regularmente e com outros artistas, seja de dentro ou fora do ramo. “Nos eventos, as pessoas vão criar uma rede social, aí você fortalece sua visibilidade com o público e ganha novas amizades”, afirma Samia Tenuta, cosplayer de Brasília. Muitos dos artistas já experientes da área são convidados a ensinar ou proporcionar uma troca de conhecimentos com os iniciantes por meio de palestras ou sendo jurados em eventos. Esse é o caso de Priscila Felippe, cosplayer há nove anos que tem atuado bastante como jurada. “Eu gosto de poder incentivar e tentar levar minha experiência de alguma forma pra galera que tá começando”, conta. A artista catarinense sempre pede um feedback dos participantes dos concursos, o que mostra essa troca que acontece nos eventos geek

Outro exemplo de arte presente nas convenções cosplay são os fotógrafos profissionais, como é o caso de Karolina Luciano, proprietária da Cor Criativa. Karolina já fez cosplays por hobby, mas, atualmente, dedica-se à fotografia artística. Os temas são relacionados a situações fictícias ou à caracterização de algum personagem específico, como, por exemplo, as fotos do personagem Coringa. O ensaio foi baseado no filme de mesmo nome, lançado em 2019, em que a modelo foi a cosplayer Rafaela Marques, artista da área mais conhecida como Rafi e as fotografias foram feitas na Escadaria do Rosário, em Florianópolis. “Uma coisa que gosto de passar com minhas fotos é a possibilidade de todos esses mundos [fictícios] existirem na minha região”, comenta a fotógrafa.

Da esquerda para a direita: A fotógrafa Karolina Luciano em autorretrato inspirado no universo de Star Wars e fotos do ensaio do Coringa, com caracterização feita pela cosplayer Rafi. (Fotos: Karolina Luciano)

Nos eventos, Karolina monta pequenos estúdios profissionais para ensaios, que duram cerca de 15 minutos cada, proporcionando a oportunidade de mais pessoas participarem. “Pra mim, a melhor parte é a empolgação do pessoal, muitos nunca fizeram ensaios profissionais ou em estúdio”, conta. Para a fotógrafa, trabalhar nas convenções é cansativo, mas também prazeroso: “Amo conhecer tantas pessoas, adoro quando contam os mínimos detalhes do personagem, do cosplay, de algo que viram no evento”. Apesar de as interações, em geral, serem positivas, existem casos negativos para as pessoas que se caracterizam e trabalham nos eventos.

“Algumas pessoas não compreendem a linha entre pessoa e personagem, e os limites e respeito que são essenciais com qualquer um”, relata Rafi. Algo que acontece em grande quantidade nos eventos são consumidores de cosplay que “confundem o artista com o personagem”. As ações desses “fãs” são assédios tanto verbais quanto físicos. Quando Max Goulart, mais conhecido como Jace, estava caracterizado em um evento como o personagem Sanji, do anime One Piece, sofreu uma situação de assédio. “Um homem dizia gostar do personagem, ficou me seguindo o artista e até disse que queria me ver sem roupa”.

Max Goulart ‘Jace’ caracterizado como o personagem Vinsmoke Sanji, do anime One Piece. (Foto: Reprodução/Instagram Jace)

Esse é apenas um dos exemplos do que pode acontecer nos eventos, mas a maioria dos casos relatados acontece quando os artistas fazem caracterizações de personagens femininos. “Sofri algumas situações de assédio de homens muito mais velhos que ainda me afetam, tanto que é muito difícil me ver usando cosplays de personagens femininas nos dias atuais”, desabafa Risu. Em muitas séries e filmes, as personagens femininas são sexualizadas de diversas formas e os cosplayers remontam suas caracterizações de forma fiel, o que faz com que muitos pensem que os artistas irão agir da mesma forma dos personagens, o que não é verídico. “Já teve uma pessoa que chegou me pedindo um selinho durante uma convenção em que eu estava vestida de Arlequina do Esquadrão Suicida”, conta Rafi.

Rafaela Marques caracterizada como a personagem Arlequina, do filme Birds of Prey. (Foto: Karolina Luciano)

Essas ações desrespeitosas, muitas vezes, fazem com que diversos cosplayers pensem em desistir da área. “Já sofri assédio moral e contatos inapropriados de rapazes em 2015 quando era de menor, com o cosplay de Tiffany Valentine [personagem da franquia de filmes de terror do Boneco Chucky], que foi o motivo pelo qual eu saí da comunidade e fiquei por um bom tempo longe”, fala Raquel Cajado. Hoje, a artista de Fortaleza afirma que está mentalmente mais estável e voltou para o ramo em 2022. “Não é porque alguém está usando uma fantasia de um personagem que você gosta que isso te dá o direito de invadir o espaço pessoal daquela pessoa de maneira não solicitada”, afirma Rafi.

Felizmente, no meio dos cosplays, existem muitos conteúdos para alertar que os artistas não gostam de contato indesejado e que é sempre necessário perguntar se podem tocar as caracterizações ou tirar fotos. “Tem muitos posts da própria comunidade cosplayer avisando que a gente tem umas regras que gostaríamos que fossem seguidas e sobre essas boas maneiras”, conta Samia. Além disso, dentro dos próprios eventos existem avisos sobre essas normas, como aconteceu na Comic Con de Londres. “Nas paredes tinha placas avisando para não tocar nas roupas e não tocar os artistas sem que pedissem”, relembra Clara.

Apesar de ser uma comunidade diversa, com representantes em várias cidades do país e aberta a todas as idades e gêneros, ainda é difícil viver apenas dos eventos de cosplay no Brasil. Segundo Rafi, “ainda é algo que poucos conseguem alcançar” e que depende muito da visibilidade do trabalho do artista nas redes sociais ou das boas conexões com outros cosplayers e empresas relacionadas à área. Além disso, muitos precisam atuar em diversas áreas da caracterização para obter uma renda única, pois depender dos prêmios dos eventos é difícil. A “concorrência é grande”, diz Kelly Cristina, cosplayer integrante do grupo Aquarium e pedagoga de Embu-Guaçu (SP).

Como essa é uma atividade cara de se realizar, como hobby ou profissão, muitos têm jornadas duplas ou triplas de trabalho para conseguir se manter e ainda produzir suas caracterizações. “Estou cursando Psicologia e amo a área, mas meu real sonho é trabalhar no meio artístico”, conta Risu. Os diferentes ramos de trabalho podem ter relações com o cosplay de certa forma, como é o caso de Raquel. “Eu, além de trabalhar como designer de moda, maquiar em eventos e ser ilustradora, sou atriz”, conta.

Na atualidade, muitos dos artistas preferem manter como hobby, principalmente os que buscam seguir com as suas carreiras de formação. “Sou estudante de Design de Jogos e estou com planos de montar um estúdio com o meu time. O cosplay sempre fará parte da minha vida, mas não posso esquecer dos meus outros sonhos”, afirma Bee, artista de Santa Catarina. Mesmo assim, existem aqueles que não seguem sua área de formação e trabalham com a caracterização, como é o caso de Ariana Fernanda, conhecida como Saskya. Uma de suas formações é técnica em Enfermagem. “O cosplay é uma das minhas fontes de renda e eu busco a profissionalização na área através de experiência em diferentes setores de eventos geek”, conta a artista.

Texto produzido na disciplina de Linguagem e Texto Jornalístico IV, sob a orientação da professora Vanessa Pedro.


Nanda Honório

Graduanda em Jornalismo pela UFSC, editora do programa Insira a Ficha na Rádio Ponto e apaixonada por tudo que envolve a cena cultural.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *