Jéssica Schmitt
Tem paixão e calvário à beça até encontrarem a cura é uma exposição que acontece de 05 de junho até 24 de julho na Fundação Cultural Badesc, no Centro de Florianópolis. A mostra possui obras de Joana Goulart, artista visual, com curadoria de Gabriel Bonfim, doutorando em Artes Visuais pela UDESC.
Quando perguntada sobre o nome da exposição, Joana relata que surgiu quando ela e Gabriel estavam ainda pensando na mostra, escrevendo o projeto para o edital da Chamada Pública para a 1ª Exposição Individual no Espaço Paulo Gaiad, na Fundação Cultural Badesc. Segundo ela, a ideia do nome veio de uma frase que leu no texto “A noite dos visons (ou A última festa da Unidade Popular)” de Pedro Lemebel, escritor e ativista chileno. Nele, Lemebel narra um encontro entre amigas travestis em uma noite de farra, onde comemoram a vida em meio a uma ditadura sangrenta, rememorando uma festa já muito distante. A frase aparece quase no final do texto, quando o autor narra a morte de uma das personagens.
“Diz respeito à epidemia de aids dos anos 80 e 90, ficcionalizando a doença como uma ceifadora que ninguém consegue escapar. ‘Parece dizer: calma, tem para todos. Não se preocupem que não vai acabar. Tem paixão e calvário à beça até encontrarem a cura’. Vejo esse título como uma escolha política de narrar a história que queríamos contar, enfatizando que enquanto pessoas dissidentes, somos marcados pelo calvário de existir como desejamos, mas que assim como temos tristezas, temos também paixão de sobra em nossa caminhada. Enquanto não encontram a cura, seguiremos vivendo, amando, desejando e sonhando”.
Ao entrar no espaço da exposição, localizado no primeiro andar da Fundação, o espectador se vê obrigado a sentar no chão, ou a agachar-se, para conseguir observar a primeira obra exposta. De frente para a escada, está Tu não te moves de ti (2022), que consiste em uma televisão posicionada no chão de taco com cenas da própria artista passando na tela. Gabriel Bonfim, responsável pela curadoria, afirma que o posicionamento da TV foi proposital. “A administração da fundação chegou a me oferecer um módulo de madeira para colocá-la em cima, mas a televisão no chão foi uma escolha estética e, principalmente, ética”. Gabriel explica que a artista utiliza do livro-novela da escritora Hilda Hilst como referência para o título da obra, de forma a despertar a paralisia existencial presente no livro. Por isso, a posição da televisão importa. “Essa imobilidade física do espectador vira uma metáfora corporal para a imobilidade existencial que o trabalho da Joana e o texto da Hilst exploram”.

As 12 obras da exposição datam de 2022 a 2025, contando uma narrativa muito pessoal, através do próprio corpo da artista. Segundo Gabriel, “Joana usa a própria biografia como matéria-prima, abordando temas como a transição de gênero em Eu matei o Otávio [2023], a dor de um trauma, como o abuso sexual em Dolores [2025], e a busca pelo amor em Véu de noiva [2025]”.
Joana relata que a construção da obra Véu de noiva foi adaptada após a escolha do nome da exposição, adicionando ao véu uma coroa de espinhos. Ela explica que calvário é uma formação rochosa na qual no antigo império romano os criminosos eram crucificados. Assim, a palavra está diretamente ligada com a história de Jesus Cristo e, por isso, Joana decidiu fazer uma versão da coroa de espinhos de Jesus com arame farpado. E acrescenta: “Na obra o véu simboliza a noiva como emblema máximo do amor romântico, enquanto a coroa rememora a dor dessa busca por amor, do desejo que se torna ferida quando esse desejo é performado por corpos que não podem sonhar”.

Para Gabriel, por se tratar de um material tão delicado, era necessário no processo de curadoria um entendimento que fosse além do estético ou acadêmico. “Era preciso confiança”. E a relação de Joana e Gabriel permite que esse olhar cuidadoso e a confiança entre os dois sejam refletidos em toda a exposição, pois, além de amigos, Joana e Gabriel foram namorados. “Nossa relação é atravessada por anos de conversas e de um diálogo muito honesto sobre arte, vida, identidade e os afetos que nos constroem e nos destroem”. Gabriel relata, inclusive, que muitas das ideias e referências da exposição partiram de algumas dessas conversas. “Percebemos que o que tínhamos em mãos não era apenas uma série de trabalhos, mas o esqueleto de uma história que precisava ser contada”.
Tecer a trama que expõe a vida da artista, para Gabriel, foi o mais desafiador, mesmo conhecendo tão intimamente Joana. “É uma responsabilidade gigante, ainda mais porque a obra da Joana é o que podemos chamar de autoficcional, ela usa a própria vida para criar, borrando as fronteiras entre o que é fato e o que é ficção. Então, quando eu seleciono um trabalho, não estou apenas escolhendo um objeto artístico. Estou, de certa forma, editando uma biografia, decidindo como narrar publicamente a identidade, o desejo, a dor e o trauma de alguém”.


As obras Sereia 3 (2025) e Sem Título (Sereia II) (2024), além da obra Véu de noiva, são obras que destoam do restante das obras da exposição em relação ao material utilizado nelas. Em Sereia 3 e Sem Título (Sereia II), Joana explora a costura e o bordado, fazendo uma sereia de algodão cru na primeira, e uma sereia de voil (um tipo de tecido mais fino) preenchida com hormônio sintético na obra de 2024. Joana relata que isso é um reflexo de sua trajetória enquanto artista e do equilíbrio que tenta passar para as suas obras. “Venho cada vez mais explorando meios que antes me pareciam distantes, como a pintura a óleo, que por muito tempo foi uma incógnita, já que me interessava tridimensionalizar meus projetos para além da tela. Gosto muito dos processos de costura também, sinto que através deles consigo criar um equilíbrio entre a delicadeza dos tecidos como suporte e o peso dos temas que abordo”.


No dia 24 de julho, às 19h, na Fundação Badesc, acontece de forma gratuita uma roda de conversa sobre a exposição, em que Joana e Gabriel compartilham um pouco sobre as obras expostas e o processo criativo por trás da exposição.
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