Augusto é apelido de Agostinho

Crônica por Danielly Alves

Texto produzido na disciplina de Linguagem e Texto Jornalístico V, sob a orientação das professoras Tattiana Teixeira e Janaíne Kronbauer.

Ilustração por Isadora Alves.

— O que você tá vendo aí?

Meu pai me pega de surpresa, seu tom de voz é quase um grito no meio dos cochichos. Respondo baixinho, incerta do que estou lendo:

— Acho que erraram o nome.

Não sei por que isso me preocupa, sinceramente. Meu pai olha também e questiona:

— Como assim?

Encaro o monitor que está em cima da porta com um nome, o número da sala e a hora.

— Ali em cima, tá escrito Agostinho — afirmo confusa, como se fosse óbvia a questão.

— Sim, qual o problema? — meu pai pergunta, tão confuso quanto.

— Ué, escreveram o apelido na porta?  — Me pergunto se um lugar desses faria isso. Que coisa mais íntima.

— Não, esse é o nome dele.

Quê?

— Quê? O nome dele não é Augusto? 

— Claro que não, o nome dele é Agostinho.

Realmente, é o que está escrito no monitor. Agostinho Limas, sala 4.

— Por que chamavam ele de Augusto então? — pergunto de novo, ainda não me dei por vencida.

— Augusto é o apelido dele  — meu pai confirma, como se fosse óbvio.

Eu pergunto de novo, ainda não acho nada óbvio:

— Augusto é o apelido de Agostinho?

Isso não faz sentido, pensei comigo. Discutir o sentido de um apelido na porta de um velório também não. Então, fiquei em silêncio.

Pensei nisso de novo logo depois. Confusa, eu nunca vi alguém ser apelidado com um nome completo, mas principalmente, me senti culpada. Esse homem é meu tio. Ou era. Ou foi. Enfim. Esse homem foi meu tio durante 20 anos. É possível você passar uma vida com alguém e, então, na porta do velório dele, simplesmente descobrir que não sabia nem o nome dessa pessoa?

Essa descoberta me fez pensar sobre o que realmente sei sobre aqueles que sempre estiveram comigo. No auge do início da minha vida adulta, gosto de pensar que sei muitas coisas, e todos os dias descubro que sei muito pouco. Estou acostumada a isso. Pelo menos relacionado a contas, mexer em um carro ou tentar escrever um texto para a faculdade. Será que também sei tão pouco sobre minha própria família?

No velório, tento reconhecer todos aqueles rostos que supostamente têm algum tipo de ligação sanguínea comigo. A senhora que me elogia, falando como eu cresci. Não faço ideia de quem é essa senhora. A minha própria bisavó, que eu não vejo há mais de um ano, e fiquei na dúvida se lembraria de mim. Spoiler: ela lembrou e disse que eu engordei. A capela está lotada de pessoas que são família. Família que estranhamente só vejo em velórios.

Enquanto eu me distraía com os pensamentos sobre como minha enorme família desconhecida-conhecida fica estranhamente feliz de poder se reunir quando alguém morre, o funcionário do local chegou para buscar o caixão. Rápido assim, as risadas sumiram ao som das rodinhas daquele protótipo de maca que carrega caixões.

Antes que eu pudesse concluir meus devaneios, o caixão foi levado para o cemitério. O cemitério da família, onde minha bisavó, meus avós, todos os meus tios e até desconhecidos-conhecidos um dia serão enterrados. Lá, em meio a uma chuva insuportável — porque a maioria dos enterros são em dias de chuva — ninguém pensava em usar guarda-chuva enquanto o caixão afundava na terra. Nem eu.

No auge do início da minha vida adulta, gosto de pensar que sei muitas coisas. Principalmente sobre a minha avó, encostada em mim enquanto a chuva cai. Sei que ela gosta de fazer perguntas sobre conversas alheias porque é muito curiosa. Sei que ela odeia que alguém peça comida por delivery e não coma o que ela fez. Sei que está sempre preocupada se comi o suficiente. Sempre achei que sabia muitas coisas. Mas no momento em que o caixão do meu tio-avô sumiu, não sabia o mais importante: como consolá-la.

Assim, tão abruptamente quanto a morte chegou para Augusto-Agostinho, a chuva terminou. Junto com a última oração do funeral.

A conversa da vez na volta para os carros era onde seria o almoço.


Danielly Alves

Jornalista em formação na UFSC, editora-chefe da Rádio Ponto UFSC, adora áudio, rádio e é apaixonada por contar histórias.

Isadora Alves

Estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e apaixonada por quadrinhos.

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