Livro sobre repressão à intelectualidade catarinense durante ditadura militar é lançado em Florianópolis

Obra organizada pelo historiador Ricardo Machado reúne documentos sobre prisão e anistia de Eglê Malheiros e Salim Miguel durante o regime autoritário

Alice Maciel

Fonte: Instagram / Editora Humana

A história que Florianópolis prefere esquecer ganha luz em novo lançamento editorial. Em abril, o historiador Ricardo Machado percorreu o estado promovendo o lançamento de Arquivos de Prisão: Eglê Malheiros e Salim Miguel, obra organizada por ele, professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), e publicada pela Editora Humana. O livro resgata um dos episódios mais sombrios da história cultural catarinense: a perseguição ao casal de intelectuais Salim Miguel e Eglê Malheiros nos primeiros dias após o golpe militar de 1964. Casados desde 1952, ambos foram nomes relevantes da literatura do estado e do país.

Reprodução da primeira página do jornal A Gazeta, de 5/4/1964. (Foto: Acervo da Biblioteca Pública de Santa Catarina)

Em 3 de abril de 1964, apenas dois dias depois do golpe que mergulharia o Brasil em 21 anos de ditadura militar, uma multidão exaltada invadiu a livraria Anita Garibaldi, estrategicamente localizada ao lado da histórica Praça XV de Novembro, no coração do centro de Florianópolis. Os invasores avançaram pelas estantes, arrancando livros considerados “subversivos”, empilhando e incendiando os exemplares em plena via pública, numa cena que evocava os temíveis autos de fé medievais.

O estabelecimento, que havia se consolidado como um importante centro cultural da capital desde sua fundação na década de 1950 por Salim Miguel — escritor catarinense de origem libanesa — e Armando Carreirão, advogado e ativista cultural, não foi vítima de uma ação isolada. O ataque fazia parte de uma sistemática operação de perseguição aos intelectuais e artistas considerados de esquerda. Tanto é que Salim Miguel já havia sido detido arbitrariamente no dia anterior, sem acusação formal ou mandado judicial. Dias depois, foi a vez de sua esposa Eglê Malheiros, destacada escritora, advogada e educadora, também ser levada para interrogatório e detenção pelos agentes do regime recém-instalado.

Interior da Livraria Anita Garibaldi. Salim Miguel é o 2º da esquerda para a direita. (Foto: Acervo de Salim Miguel e Eglê Malheiros)

Hoje, quem passa pelo número 111 da Praça XV de Novembro, onde atualmente funciona uma loja de departamentos, desconhece essa história. Diante desse silenciamento, Machado decidiu organizar o livro Arquivos de Prisão: Eglê Malheiros e Salim Miguel, reunindo documentos inéditos sobre o caso. O Caderno Cultural Expressões entrevistou o autor, que compartilhou os motivos que o levaram a resgatar esse episódio da história catarinense, além de falar sobre o impacto e a importância do trabalho.

Ricardo e o vereador Afrânio Boppré (Psol) no lançamento do livro que ocorreu na Câmara Municipal de Florianópolis. (Foto: Reprodução/Instagram)

CADERNO EXPRESSÕES – O que o motivou a resgatar especificamente essa história de Salim Miguel e Eglê Malheiros entre tantos casos de repressão durante a ditadura militar?

O caso da prisão da Eglê e do Salim, junto com a queima dos livros da livraria Anita Garibaldi, é simbólico por vários motivos. Primeiro porque aconteceu logo depois do golpe de 64, então ainda estava tudo muito quente, muito recente. Além disso, os dois já eram figuras muito respeitadas no meio intelectual e cultural de Santa Catarina naquela época. Quando a gente começa a olhar mais de perto, percebe que tanto a vida quanto a atuação deles vinham sendo monitoradas há anos pelos órgãos de repressão.

O que o livro tenta mostrar é justamente isso: como essa vigilância e perseguição estavam conectadas a uma rede de civis que colaboraram com o golpe — gente como Nereu Pereira, Altino Flores… Então não é só uma história isolada, mas um retrato de como funcionava essa máquina de repressão. E acho que, no momento atual, em que a gente ainda debate o papel desses agentes civis e militares na construção de um estado autoritário, retomar essa história é também uma forma de romper com o silêncio e o medo que essa época tentou impor.

CADERNO EXPRESSÕES – Como foi o processo de pesquisa e acesso aos documentos apresentados no livro?

Esse projeto vem sendo construído há uns cinco anos, mais ou menos. Tudo começou quando tive contato com o acervo do IDCH [Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas], na Udesc [Universidade do Estado de Santa Catarina], que guarda parte importante da documentação sobre a Eglê e o Salim, além dos processos de indenização relacionados à ditadura aqui em Santa Catarina. Depois disso, mergulhei de cabeça nos arquivos do site Memórias Reveladas, que é uma fonte riquíssima e que, felizmente, hoje é aberta ao público. O maior desafio mesmo foi lidar com a quantidade de documentos — é muita coisa. Então o trabalho exigiu um olhar atento, pra conseguir selecionar o que de fato compunha a narrativa que eu queria construir. Mas sem dúvida, todo esse esforço só foi possível porque há hoje um acesso a esses arquivos. Isso precisa ser valorizado.

CADERNO EXPRESSÕES – Como você avalia o conhecimento dos florianopolitanos atuais sobre esses episódios de repressão que ocorreram em locais tão centrais da cidade?

A verdade é que a maioria das pessoas em Florianópolis conhece muito pouco dessa história. Sempre que eu conto que houve prisões, perseguições e até queima de livros bem no centro da cidade, em lugares que a gente frequenta até hoje, as pessoas se espantam. Existe uma ideia errada de que a ditadura foi algo que se deu só nas grandes capitais, em Brasília, no Rio ou em São Paulo — como se estivesse longe da gente. Mas o que o livro mostra é justamente o contrário: a ditadura se infiltrou em todos os cantos, atingiu gente comum, muitas vezes só porque frequentava determinados espaços, lia certos autores ou participava de rodas de conversa. Era uma vigilância constante, silenciosa, e isso também faz parte da história de Santa Catarina — que precisa ser contada, lembrada e discutida.


Alice Maciel

Estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, apreciadora de documentários e literatura de não-ficção.

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