Fernanda Zwirtes

Sete vezes soa o sino na alta torre da Catedral de Nuestra Señora de la Asunción, de Córdoba, capital da província homônima, na Argentina. As sete badaladas tocam exatamente às sete horas da noite de segunda-feira, 21 de abril. O ano é 2025 – de Jubileu, ou seja, tempo sagrado de recomeço e libertação na religião católica. Ele é proclamado na Bíblia Sagrada em Levíticos 28:5-10: sete vezes sete anos, sendo santificado o quinquagésimo. A missa não é ordinária. Agora, marca o início de um luto oficial de sete dias no país, decretado pelo presidente Javier Milei.
Por volta das sete horas da manhã do mesmo dia, no horário oficial de Roma, Itália, morreu o 266º Pontífice da Igreja Católica: Papa Francisco, ou Jorge Mario Bergoglio, jesuíta que foi cardeal de Buenos Aires, capital do país, de 2001 até 2013. Em frente à Catedral cordobesa, cartazes com seu nome. “Todos, todos todos”, diz um deles, grafado em letras vermelhas, em referência a uma conhecida fala do religioso: la Iglesia es para todos. O verbo se faz realidade olhando em volta. Na Plaza San Martín, centenas de fiéis, desde jovens cheios de piercings e cabelos coloridos até idosas que seguram firmemente um rosário entre as mãos, aguardam ansiosos para o início da celebração, prestes a começar.
Tantas pessoas não cabiam dentro da Catedral. Por isso, o teto com pinturas renascentistas delineadas com tinta dourada e ornamentadas com ouro deu lugar ao céu poente de outono e a missa foi rezada do lado de fora, com cadeiras na rua e um altar improvisado em frente às portas da iglesia. Ocuparam as primeiras cadeiras os homens da lei, assim como Jesus disse em Marcos 12:38-40. Com ternos asseados, sentaram-se lado a lado o governador da Província, Martín Llaryora, e o prefeito da cidade, Daniel Passerini, acompanhados do ex-governador Juan Schiaretti, todos expoentes do Partido Justicialista, herança de Juan Perón.
Ao seu redor, centenas de leigos e consagrados, sentados e em pé. Fora das barreiras de contenção que circundavam o local e perto das viaturas da Guardia Municipal, há também algumas pessoas que não se enquadram em nenhuma destas categorias. Aqueles que, assim como o Filho do Homem, não têm onde repousar a cabeça e vivem nas ruas do centro da capital, tornando os bancos da Plaza San Martín seu leito diário. Eles não têm como se ausentar da celebração – ela ocorre no passeio público, sua casa. Ao som do coral que se posiciona ao lado esquerdo do altar, a multidão heterogênea se silencia.

A missa começa, en nome del Padre, del Hijo y del Espíritu Santu. Quem profere as palavras que inauguram o rito é o arcebispo Ángel Siexto Rossi, de 66 anos, que foi escolhido pelo próprio Papa Francisco para o posto, em 2021. Jesuíta como o Pontífice, não demora muito até que faça referência ao amigo, citando seu nome, aquele cuja multidão aguardava ansiosa para ouvir – não d’Aquele que ressucitara um dia antes, como seria o habitual. “Damos graças à passagem da vida e Igreja do Papa Francisco”, proclama. Ajeita os óculos e suas mãos tremem um pouco.
Ángel prossegue a liturgia da palavra. O solidéu vermelho em sua cabeça denuncia um fato já consolidado: o cardeal irá a Roma nas próximas semanas para o Conclave, rito de eleição do próximo líder da Igreja Católica. Algumas moléculas que sairão da chaminé da Capela Sistina, visível da Praça São Pedro, no Vaticano, serão do envelope queimado que conterá seu próprio voto para o sucessor de seu amigo. Ele vota e também pode ser eleito, assim como outros três cardeais argentinos. Todos nomeados por Jorge Bergoglio na última década.
Os olhos atentos dos fiéis não mentem. Ángel é muito querido na cidade, segundo a aposentada Adriana Coniglio, 60, que carrega sua fé no peito junto com uma cruz de madeira. O arcebispo compartilha da mesma afeição pública que Francisco. Pelo fato de o Papa ter caminhado pelas realidades da Argentina, sabia o que estava fazendo, define Adriana. “Caminhou com a Igreja como caminhava Jesus em seu tempo. Sem tanto protocolo, sem tanto questionamento. Com a simplicidade de ser apenas mais um”, defende.
Ele recebeu do Pai a promessa do Espírito Santo, e a comunicou, esta que agora vocês veem e escutam, recita o arcebispo, finalizando a leitura do Ato dos Apóstolos. Próximo dali, com as mãos em devoção, o presbítero Frederico Bizzari, 30, responde ao chamado da Palabra de Dios, junto com a multidão: gracias a Dios. Tanto o Espírito Santo como o Papa Francisco foram responsáveis por Frederico decidir sua vocação como padre.
Quando viu a fumaça branca na chaminé do Vaticano ser anunciada na televisão, tinha 18 anos e acabava de chegar em casa de sua aula na Facultad de Ciéncias Económicas, da Universidad Nacional de Córdoba (UNC). O Papa é argentino. “Foi como um empurrão. Devo muito a Francisco e seus gestos, suas palavras”. Acompanhou a viagem do Pontífice na Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, em 2013, e decidiu pelo sacerdócio. “Era como se eu fosse um cego e de repente começasse a enxergar, curado”, define.
A missa segue com a leitura de Apocalipse 21:2-8 e, logo depois, da anunciação do Anjo Gabriel à Maria. É uma mistura da intervenção divina com as transformações mundanas, preparando a multidão para a Homilia, onde o assunto não pode ser outro: o primeiro Pontífice latino-americano, seu papado de transição e fortes mudanças na estrutura da Igreja Católica. Logo no início da reflexão, ouvem-se narizes fungando. Olhos mareados. A lembrança do conterrâneo traz lágrimas à face de alguns dos fiéis mais emocionados.
Ángel Rossi suspira. “Francisco, com suas palavras, e sobretudo com seus gestos, nos fez saber que outro mundo é possível”, diz. E de fato: quando Jorge Bergoglio se curvou para lavar os pés de 12 detentas na prisão de Rebibbia, em Roma, a Igreja Católica curvou-se com ele. Politizou a extrema-unção quando enterrou, no cemitério da Santa Sede do Vaticano, Willy Herteller, um homem de 80 anos que vivia em situação de rua na Praça São Pedro. Encerrou cruzadas quando encontrou-se com os grandes líderes de outras religiões pela paz, como o imã Ahmed al-Tayeb, em sinal de paz. “Nos convidou a respeitar a diversidade e lembrar que a Igreja Católica não é uma ONG piedosa, mas sim a casa de Deus que precisa despojar-se do mundano e acolher a todos”, reforça.
Não só de piedade viveu a Igreja de Francisco – abriu a boca em favor do direito de todos que se achavam em desolação, como disse a mãe do rei Lemuel, em Provérbios 31:8-9. Todas as noites, às 19h, Jorge Bergoglio ligava para o também argentino Gabriel Romanelli, pároco da Igreja da Sagrada Família na Faixa de Gaza. Beijou os pés dos líderes do Sudão do Sul, entre eles os rivais Salva Kiir e Riek Machar, presidente e vice-presidente respectivamente, em um ato que pedia pela paz do país, que se encontrava em guerra civil.
O branco das roupas do Papa não foi materializado no branco da paz, entretanto. Gaza continua sendo bombardeada todos os dias e o Sudão do Sul retorna a uma escalada de violência beirando um conflito generalizado. Dois ínfimos exemplos perto das centenas de conflitos armados que se perpetuam pelo mundo. Entretanto, seus velhos sapatos pretos desgastados ainda fizeram mais que os vermelhos lustrados que usava seu antecessor Bento XVI – há quem diga que eram originais da Prada.
Jorge instaurou comissões para investigar casos de pedofilia cometidos por sacerdotes, as finanças da Igreja e, em 2023, contrariando decisões anteriores, permitiu a bênção católica a casais homoafetivos. De todos esses feitos, e alguns mais, seguiu-se a Homilia por quase 15 minutos: emotiva e melodiosa. Nesse momento, ao recitar o por Cristo, nuestro Señor, amén, Florencia Longo, consagrada da Congregación de las Hermanas Esclavas del Corazón de Jesus, sentiu lágrimas brotarem nos olhos. Recordou quando foi a Roma e conheceu Francisco pessoalmente. “Todos nós cristãos pertencemos à Igreja, mas Francisco realmente te une e te faz sentir mais próxima do Evangelho”, testemunha.
Tão próxima que já chega a hora da comunhão. Reza-se o Cordero de Dios. Alguns se ajoelham nos paralelepípedos frios da rua; outros, por idade ou comodidade, preferem ficar em pé. Logo descem do altar os presbíteros, a compartilhar a hóstia. Cada fiel comunga a seu jeito: com as mãos em sinal de recebimento, direita abaixo da esquerda, ou recebem-na tradicionalmente, das do sacerdote à sua boca. Dois jovens magros, vestidos com camisas brancas e calças sociais, chamam atenção pela atitude antiquada. Ajoelham-se em frente ao padre e recebem o corpo de Cristo.
Um deles é o estudante Mateo Claria, de 17 anos. Após decidir ser católico, tudo que vem depois é um presente, define ele, ao recordar sua felicidade ao ter um Papa argentino. “É muito lindo ver um papa que toma mate”. O outro é o colega Lautaro Zurlo, 18, que tem os olhos brilhando ao falar da humildade de Jorge. “Não usava roupas caras nem dormia em palácios, dormia em um quarto simples com uma cama e banheiro. Era admirável”, conta.
A celebração se encaminha ao fim. Todos se abraçam. La paz del Señor esté siempre con vosotros y con tu espíritu. O arcebispo Ángel ainda oferece as últimas palavras da missa para Francisco. “Ele morreu como viveu. Que Deus nos dê muita força para tentar estar em nossa fé à altura dessa pessoa”, encerra. Há a benção final, acompanhada de um breve silêncio. Na Plaza San Martín, dezenas de pessoas gritam: Viva, Francisco!
Agora, resta esperar, segundo os fiéis, que o Espírito Santo escolha o que é melhor para o futuro da Igreja. De acordo com os jornais e a tradição, são os cardeais que escolhem. Eles votam no próximo pontífice ainda no mês de maio. No ar, pairam temor e esperança. “Gostaríamos de ver eleito alguém que seguisse, mais ou menos, a linha de Francisco”, desabafa Adriana.
Há receio de que o conservadorismo retorne ao Vaticano, estremecendo a geopolítica do mundo contemporâneo mais uma vez e gerando ambiguidades sobre o amor pregado há 2000 anos por Cristo. Talvez a maior tragédia da Igreja Católica, como disse José Saramago em O Evangelho segundo Jesus Cristo, não seja dizer amor e não chegar à língua. Mas sim ter língua e não chegar ao amor. Para o padre Frederico, frente a essa incerteza, a questão é outra.
“Mira, en definitiva, la unica tragedia en esa vida es no ser santos”, diz.
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