Carne de panela

Crônica por Juliana Carvalho

Texto produzido na disciplina de Linguagem e Texto Jornalístico V, sob a orientação da professora Tattiana Teixeira.

Ilustração por Isadora Alves.

Era domingo, dia de bater o ponto na casa da minha avó para o almoço de família. A senhora de 73 anos estava preparando a carne cozida do jeito que só ela consegue fazer — colocou a carne congelada em uma panela de pressão com água, temperou, tampou e acendeu a boca do fogão. Não me preocupei. No fim, contra toda a lógica, fica uma delícia. 

Enquanto ela cozinhava, eu e meu irmão jogávamos cartas na mesa oval da cozinha. Quando ganhei mais uma partida, ele deixou transparecer a dor de cotovelo:

— Sorte no jogo, azar no amor. 

Foi a deixa que minha avó precisava. Assim que notei onde a conversa ia parar, levantei o olhar para o meu irmão. Desde que eu era pequena, ela sempre começa a história do mesmo jeito, pela metade: 

— Eu estava na janela quando ele chegou, montado num cavalo branco. — Antes de jogar outra carta, meu irmão fez alguma piada sobre o homem ter sido um príncipe encantado. A senhora deu risada. — Ele bateu na porta e pediu pro meu pai a permissão pro casório.

A afirmativa veio rápido. Minha avó não conta, mas, nos anos 60, seu pai não via a hora de ter uma boca a menos para alimentar. Com 19 anos, ela se casou com um homem de 23, mudou de cidade e deixou tudo o que conhecia para trás. Tudo, menos seu marido, claro.

— A gente ia para onde tinha trabalho. Era triste porque eu não conhecia ninguém e era muito tímida. Mas logo fiz amizade com a filha do dono de uma fazenda. Ela era mais nova que eu, a gente brincava o dia inteiro.

O bom humor da senhora escondia as partes ruins da história. Fui entendendo as sombras da ambiguidade enquanto crescia: o homem com quem casou não era fiel, bebia demais, nunca estava em casa. Até hoje a cidade o conhece pela sua fama. Se você citar o apelido “Zezão” para qualquer morador na faixa da terceira idade, eles vão ter ao menos uma história para contar. 

Minha avó, no entanto, sempre conta a mesma. Começa no cavalo branco e segue com seu marido em um pano de fundo. De príncipe, ele passa a ser um acessório. 

— A gente já estava na cidade quando seu tio nasceu. Depois de dar à luz eu voltei para casa. Sua mãe e tia tinham derrubado o armário da cozinha inteirinho! As louças todas quebradas, tudo porque elas queriam pegar uma cesta de doce que eu deixei no alto. Criança é o trem mesmo, viu! 

Ela passou por dois partos assim: indo para o hospital sozinha quando sentia contrações e voltando a pé no dia seguinte. Quando comentamos o absurdo dessa situação, ela respondeu:

— Ué, mas era normal na minha época. E eu não voltava sozinha, voltava com um filho nos braços. 

Um deles, o terceiro de cinco, a gente não cita e ela nunca conta. Seu marido não estava em casa e ela já sentia dor demais para conseguir andar. Vivia em uma região onde existia um espaço de ao menos 500 metros entre uma casa e outra, era quase impossível pedir socorro aos gritos. O menino nasceu morrendo sufocado. 

Me pergunto se foi por isso que ela começou a ir até o hospital sozinha nos partos seguintes. Me pergunto, mas nunca pergunto para ela. A história não é sobre isso. 

— O Zezão entrou nos bombeiros e aprontava um monte. Mas depois que o seu tio, Marcos, nasceu, a gente já estava assentado na cidade. Ficou tudo bem. 

A história sempre mantém a mesma essência. A senhora não passa pano, mas também não condena. Narra o enredo com a mesma passividade com a qual o viveu. Às vezes, me dá raiva de ouvir. O final sempre soa feliz na voz tranquila, mas deixa um gosto agridoce na minha boca. Gosto que queria empurrar para baixo enquanto engolia o almoço. 

— Mas aí veio o AVC — meu irmão disse, apertando os lábios. — E ele precisou sossegar. 

A raiva se dissipou devagar. Me lembrei de quem tocava violão e cantava em todas as festas de família, quem escolheu meu nome e carregou meu irmão nos ombros durante toda a infância. Lembrei de quem está acamado hoje, incapaz de andar sem uma cadeira de rodas e alguém disposto a empurrá-la. Lembrei do meu avô.

— Precisou, mas não sossegou não, viu? Foi entender o recado só depois de três — a senhora suspirou, resignada. — Mas ficou tudo bem. Olha só para vocês, tenho tanto orgulho.

Ela desligou o fogão e perdi a partida. Pouco tempo depois, o resto da família chegou. Tios, tias, primas e mãe. Do grupo de 16 pessoas, o que não faltou foi alguém para levantar meu avô da cama e empurrar a cadeira de rodas até a mesa, para o seu lugar na cabeceira, onde um prato o espera todos os dias, no mesmo horário. 

Me perguntei se ele estaria almoçando conosco se ainda conseguisse andar, mas logo afastei os pensamentos. Sabia que, independente de onde meu avô estivesse, minha avó estaria ali, preparando o almoço. 

Ela colocaria o pedaço de carne congelado na panela, um pouco de água, tempero e a tamparia. Ligaria o fogo, nos contaria a mesma história e, por mais que o esperasse, não questionaria onde está o meu avô. Assim como nós, ela também saberia a resposta. 

Ele não estaria ali.


Juliana Carvalho

Estudante de Jornalismo na UFSC, apaixonada por viver mil vidas em uma por meio da leitura e da escrita.

Isadora Alves

Estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e apaixonada por quadrinhos.

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