Pablo Brito

Começou! A câmera abre num salão festivo, bolo na mesa, sorriso falso no rosto de uma menina que completa 23 anos e, pronto, já estávamos de volta ao Brasil de 1988 em 2025. Ou quase. Porque a estreia do remake de Vale Tudo, agora sob a batuta de Manuela Dias e com direção de Paulo Silvestrini, não é exatamente um retorno ao passado. É mais como visitar a casa da infância depois de uma reforma: tudo está ali, mas nada está igual.
Vale Tudo foi, e talvez ainda seja, a novela das novelas. Um monumento folhetinesco erguido por Gilberto Braga (com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères), que olhou para o Brasil dos anos 80 e perguntou, na cara dura: vale a pena ser honesto neste país? Essa pergunta guiava a trama original, centrada na relação de Raquel (vivida à época por Regina Duarte) e sua filha Maria de Fátima (Glória Pires), que a trai e a humilha em busca de ascensão social.
Na nova versão, Raquel é Taís Araújo — e que escolha. A atriz entrega uma heroína com firmeza e afeto. Diferente da original, que sofria calada, a nova Raquel revida. Literalmente. A cena em que ela leva um tapa do marido e devolve, sem hesitar, é emblemática: o remake não quer apenas refazer. Quer atualizar. Quer dizer que algumas coisas mudaram. Ou pelo menos deveriam ter mudado.
Maria de Fátima agora é Bella Campos. Jovem, carismática, ainda encontrando a espessura da vilã que é o eixo moral da história. Na versão de 1988, Glória Pires fez história como a filha ambiciosa que rouba o dinheiro da mãe, falsifica documentos, engana, manipula e se envolve com César, um sedutor oportunista interpretado na época por Carlos Alberto Riccelli. Em 2025, o papel é de Cauã Reymond, que entrega um César convincente, passivo-agressivo e elegante na canalhice. Ah, e claro, irresistível, como manda o figurino.
Mas o remake tem um desafio que nenhuma maquiagem cobre: ele existe à sombra de um original quase perfeito. A novela de 88 teve uma das vilãs mais icônicas da história da TV, Odete Roitman, vivida por Beatriz Segall — uma mulher rica, fria, elitista, que dizia frases como “Essa terra é uma mistura de raças que não deu certo” com a serenidade de quem pede um cafezinho. Agora, Odete será Débora Bloch. Ainda não apareceu, mas os trailers sugerem uma vilã menos austera, talvez mais humana. Um risco enorme, ou uma escolha consciente de não tentar repetir o irreplicável.
Esteticamente, a novela abraça a cor. Sai a paleta cinza das produções recentes da Globo e entra uma direção de arte inspirada. Tudo é vibrante, quase pop. A música de abertura, “Brasil” de Cazuza, segue com a voz de Gal Costa — outro aceno à memória afetiva de um país que tentava mostrar sua cara, mesmo que não saiba exatamente como ela é.
Gilberto Braga era uma navalha, Manuela Dias é uma lupa. O texto da autora é mais explicativo e contemplativo que o de Braga. Onde antes havia silêncios e cortes secos, agora há longos diálogos e emoções verbalizadas. Alguns fãs torcem o nariz, com razão, porque parte do charme da primeira versão era justamente o subtexto. Mas o Brasil de hoje talvez precise ser lembrado em voz alta de que certas coisas são erradas, tipo roubar a própria mãe ou tentar aplicar golpes, inclusive os de Estado.
E falando em corrupção: o remake também abranda o teor político. A crítica social continua lá, mas mais sutil. Na primeira versão, o país vivia a redemocratização. A novela foi exibida no mesmo ano em que a Assembleia Constituinte promulgou a Constituição Cidadã e pôs fim à censura. Então era normal que se quisesse escancarar tudo que estava preso na garganta. A trama sobre honestidade não é mais o motor principal, é pano de fundo. Uma decisão compreensível, e talvez necessária, para um país onde a ética virou trending topic para discursos políticos e depois sumiu sem explicação.
Ainda assim, há força. A química entre o elenco, a competência técnica da produção, a tentativa sincera de atualizar temas sem perder a essência. Vale Tudo não quer ser melhor que o original. E talvez aí esteja sua maior virtude. Ela se comporta como quem sabe que está pisando em solo sagrado, e prefere fazer silêncio a cometer heresia.
Agora, resta acompanhar os próximos capítulos. O remake é promissor, mas caminha na corda bamba entre o tributo e a repetição. Se cair, será julgado como falta de originalidade. Se acertar o passo, pode ser lembrado como a rara exceção de quando se mexeu num clássico e ele não quebrou.
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