Camila Borges
Desde o início do século XX, produções cinematográficas tratam da relação entre humanos e robôs. O filme “Metrópolis” (1927), dirigido por Fritz Lang, já apresentava a relação de disputa entre homem, máquina e poder. “Esse imaginário exposto por Fritz Lang está presente até hoje, quando pensamos nas Big Techs. Grande parte da sociedade produz, enquanto uma pequena parcela molda a maneira como nos comunicamos, nos entretemos e consumimos informações”, diz Marcelo Barcelos, jornalista e pesquisador das áreas de Comunicação, Inteligência Artificial e Internet das Coisas (IoT).

Segundo Marcelo, a ficção científica antecipa o futuro. Com os avanços da tecnologia, “o tempo entre a projeção da ficção científica e a concretização na vida real tem sido cada vez mais curto”, disse o pesquisador. Outro exemplo disso é o longa-metragem “Her” (2013), dirigido por Spike Jonze, que apresenta o cotidiano de um ser humano que se apaixona por um sistema operacional. De acordo com Barcelos, a produção reflete a contemporaneidade, pois “o filme mostra a solitude e o vazio que a tecnologia impõe. Temos compartilhado cada vez mais nossas vidas com sistemas operacionais. O celular é uma extensão do nosso corpo”.
Não levou muito tempo para que a Inteligência Artificial deixasse de ser uma premonição e se tornasse realidade na produção cinematográfica. Em 2023, roteiristas de Hollywood ficaram cinco meses em greve a fim de reivindicar normas para o uso da IA no cinema. “Os diretores se deram conta de como a IA interfere no labor e de que essa ferramenta maneira afeta o sentido daquilo que entendemos como trabalho”, explicou Barcelos.
A partir da greve, o Sindicato dos Atores de Hollywood (SAG-AFTRA) acordou que estúdios e produtoras deverão informar sempre que veicularem qualquer material produzido por IA e que a ferramenta não pode receber créditos de escritor. Além disso, a utilização de avatares de atores ou atrizes só é permitida a partir de consentimento.
Os usos das imagens produzidas com Inteligência Artificial (IA) no cinema e nas redes sociais também foram tema de debate em mesa temática no 3º Festival Internacional de Cinema de Ficção Científica (SCI-Fi Floripa). O encontro ocorreu no Centro Integrado de Cultura (CIC), em Florianópolis, em 27 de julho deste ano. A mesa sobre IA e ficção científica teve como debatedor Marcelo Barcelos, com mediação da professora de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Fabiana Piccinin. No encontro, os pesquisadores falaram sobre os possíveis perigos e a regulamentação do uso dessa tecnologia.

Riscos da IA
A graduanda de Letras da UFSC Laís Mazzuco, que estuda fotografia no campo da arte, diz que a IA possibilita a inserção de cenários e objetos que auxiliam na composição das fotos, mas percebe como o software tem um viés questionável do ponto de vista ético. “É muito bom usar Inteligência Artificial para fazer composições que eu não teria tempo ou dinheiro para montar. Mas ao solicitar a criação de figuras femininas, geralmente a IA devolve imagens erotizadas e às vezes pornográficas. Isso tem a ver com o histórico das buscas que outros usuários fizeram na ferramenta.”
Laís falou sobre a violação dos direitos autorais, pois as imagens criadas com IA no Photoshop vão para um banco de dados e outras pessoas podem acessá-las. “Você não pode escolher não compartilhar”, explicou a fotógrafa.
Embora a IA possa auxiliar na produção audiovisual ao possibilitar a criação de mundos e de elementos inusitados, é necessário que haja regulamentação da ferramenta para que crimes como pornfakes, deepfakes ou violação de direitos autorais sejam combatidos, explicou Barcelos.
A adulteração de vídeos, fenômeno chamado de deepfake, é cada vez mais comum com os avanços da IA. A partir da multiplicação dos apps de Inteligência Artificial, são facilmente adulteradas imagens, vídeos e áudios. O apresentador do programa “Caldeirão com Mion” (TV Globo) foi vítima de uma deepfake em vídeo no qual um avatar tridimensional do apresentador vende a cura do autismo, o que não existe. Marcos Mion disse em entrevista ao programa “Fantástico”, da TV Globo, que o vídeo “tem a minha voz, vendendo a cura para o autismo. O que é de uma baixeza, porque eu sou um cara que luto pela conscientização do autismo.”
No festival de cinema, Barcelos falou sobre o avanço do pornfake, prática que diz respeito ao uso da tecnologia para falsificar vídeos pornográficos. Muitos desses materiais envolvem crianças, vulnerabilizam o gênero feminino e fetichizam transexuais.
Casos de racismo são intensificados a partir do reconhecimento facial com IA, a exemplo do uso de câmeras para segurança pública. De acordo com Barcelos, pessoas negras são acusadas de maneira injusta pela Inteligência Artificial, pois as tecnologias são treinadas a partir de bancos de dados que não representam a diversidade étnica da população brasileira.
A mediadora Fabiana Piccinin falou sobre o “colonialismo de dados”. De acordo com a professora, as IAs têm contribuído para disseminar estereótipos. “Se você pedir para Inteligência Artificial desenhar a imagem de uma pessoa carioca, o software vai apresentar alguém negro e periférico”. Para Barcelos, devemos questionar o porquê são estabelecidas essas relações. “Qual é a raspagem de dados que proporciona uma representação tão limitada, diante de um universo tão grande que é a figura humana?”
De acordo com Fabiana, o colonialismo de dados tem contribuído para que pessoas internalizem uma realidade construída pela IA. “Isso faz com que a ferramenta molde nossa forma de pensar e que os usuários devolvam concepções estereotipadas para os bancos de dados, em um processo de retroalimentação”.
Marco Legal da IA
Está em debate no Senado Federal o Projeto de Lei (PL) 2338/2023 que pretende regulamentar os usos da IA no Brasil. O texto estabelece a necessidade de classificação do conteúdo, responsabilização, prestação de contas, revisão humana e criação de um órgão de fiscalização, com representantes de empresas reguladoras como Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Entre as críticas ao PL está o questionamento sobre qual critério será utilizado para classificar os riscos à sociedade, pois a categorização descrita pelo projeto não leva em consideração as especificidades de cada setor. “Não é possível prever toda e qualquer utilização da IA. O adequado seria criar uma lei que estabelecesse princípios a serem respeitados durante a criação da ferramenta”, disse o professor e consultor de IA Gustavo Macedo em entrevista ao Jornal da Tarde da TV Cultura.
Para Barcelos, “o PL é extremamente conservador, pois não discute as problemáticas específicas dos usos da IA no país. O Brasil é o país que, infelizmente, mais mata homossexuais no mundo e ao mesmo tempo é um dos locais em que mais se consome conteúdos relacionados a travestis. E isso não está sendo discutido no Projeto de Lei”.
O Brasil é o país que mais acredita em notícias falsas, de acordo com a pesquisa “Truth Quest” da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), realizada em 2024 com 21 países. Esse nível de desinformação é acentuado pelo uso da Inteligência Artificial, que manipula vídeos e imagens, principalmente em períodos eleitorais. “Importamos esse modelo dos Estados Unidos com a eleição do Trump e vimos as consequências disso no Brasil”, esclareceu Barcelos.
“O conteúdo audiovisual é considerado a forma narrativa de maior credibilidade. Fomos criados em uma cultura de que, se estamos vendo, então é verdade”, explicou Fabiana. É preciso que sejam criadas políticas públicas para ensinar pessoas a distinguirem notícias falsas de verdadeiras. De acordo com Barcelos, “a distorção que o brasileiro tem da realidade é muito grave. Precisamos de uma política nacional para alfabetização midiática”.
O evento
O Sci-Fi Floripa Festival Internacional de Cinema de Ficção-Científica foi criado em 2016. A 3ª edição do projeto ocorreu entre 23 a 28 de julho e foi apoiada pela Fundação Catarinense de Cultura (FCC), a partir do Prêmio Catarinense de Cinema Edição Paulo Gustavo, com patrocínio do Governo do Estado de Santa Catarina. No evento foram realizadas mostras de curtas-metragens nacionais e internacionais, oficinas de escrita, debates, palestras e sessões comentadas.
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