Saudades e experimentações: Os caminhos da arte de Celaine Refosco

Conheça a artista de Pomerode que venceu o Prêmio AF de Arte Contemporânea 2024

Ana Muniz

Celaine já exibiu seus trabalhos no Museu de Arte de Blumenau, no Museu Guido Viaro e no Instituto Juarez Machado. (Foto: Vini Waknin)

Aos 63 anos, Celaine Refosco faz o que queria desde criança: dedicar-se exclusivamente à sua arte. Em 2019, após uma vida profissional na indústria têxtil e na educação, resolveu que era o momento de trabalhar apenas em seu ateliê. Em 2024, Celaine dá mais um passo em sua trajetória como artista e vence a décima edição do Prêmio AF de Arte Contemporânea, entre mais de 150 candidatos catarinenses.

O anúncio de sua conquista foi feito em 6 de agosto, no Centro Integrado de Cultura (CIC), em Florianópolis, durante a abertura da exposição referente à premiação. Na sala Lindolf Bell, estão expostas obras das três finalistas do prêmio: Celaine, Camila Martins e Dariane Martiól. É a primeira edição em que a final é composta apenas por mulheres. Como vencedora, Celaine recebe, além de um valor de R$ 17 mil, uma residência artística de três meses na Cité Internationale des Arts, em Paris, e uma bolsa de estudo em francês na Aliança Francesa (AF) de Florianópolis, responsável por organizar a premiação.

Camila Martins, Celaine Refosco e Dariane Martiól na abertura de sua exposição conjunta no CIC. (Foto: Vini Waknin)

Natural de Joaçaba e residente de Pomerode, Celaine se formou na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) como bacharel em Pintura. Trabalhou como designer têxtil e em projetos de educação até 2019. Teve destaque com a arte ainda em 1981, quando ficou em primeiro lugar na categoria pintura no II Salão de Artes Plásticas na Universidade Regional de Blumenau (FURB). Nos últimos cinco anos, atua exclusivamente como artista, experimentando as técnicas, materiais e suportes aos quais não tinha acesso antes. A exposição do CIC, que será exibida até o próximo sábado (7), inclui algumas de suas pinturas e desenhos sobre telas e tecidos. O Caderno Cultural Expressões conversou com Celaine sobre sua jornada no mundo artístico, assim como seus trabalhos e conquistas recentes. 

A residência artística de Celaine em Paris está prevista para outubro deste ano. (Foto: Vini Waknin)

CADERNO EXPRESSÕES – De que modo a arte esteve presente ao longo da sua vida?

CELAINE – Eu me entendo como artista desde criança. Não por fazer coisas [artísticas], embora fizesse. Sempre fui uma pessoa habilidosa e com gosto por essas coisas, especificamente pintar ou desenhar. Mas eu percebia que a minha percepção do mundo era um pouco diferente de muitas pessoas com as quais convivia. Então, fui entendendo que a arte não estava tanto no fazer, mas na forma de perceber, no entendimento. Comecei a trabalhar com tinta aos oito [anos], e, antes disso, já tinha noção de que as pessoas me consideravam uma criança muito sensível. Mais tarde esse ser sensível ganhou o nome de “ser artista”, teve essa tradução. Isso era uma coisa bem diferente para Joaçaba naquele momento. Estudei na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e concluí meu curso na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) como bacharel em Pintura. A arte não é uma profissão tão linear como tantas outras. A arte lida com a subjetividade. Então, mesmo que você tenha aspectos determinados pela objetividade, é na construção simbólica, individual e subjetiva que vai realmente se constituir um artista. É uma coisa um pouco mais complexa, demora mais tempo para que você consiga falar “posso viver disso”. É a grande pergunta que se faz aos artistas: como viver disso? Como transformo a minha arte em maneira de sobrevivência? E aí, acabei optando por atuar como designer têxtil e economizar essa coisa da arte para poder desenvolver dentro do meu próprio tempo e não ter esse aceleramento, fazer uma coisa de qualquer jeito ou do jeito que o mercado dizia que eu devia fazer. Isso acontece com muitos artistas, e eles acabam não perdurando. Porque fica uma coisa que não está fundamentada na verdade pessoal, e ela acaba se desvanecendo. Ou o próprio mercado rejeita, ou as pessoas se frustram, alguma coisa acontece.

CADERNO EXPRESSÕES – Como as suas experiências na área têxtil e na pedagogia impactaram a sua arte?

CELAINE – Ao trabalhar na indústria têxtil, entrei em contato com a ideia da Revolução Industrial e com o processo de industrialização. A instalação da indústria da maneira como conhecemos começou exatamente pelo setor têxtil. Os primeiros motores a vapor foram acrescentados em teares, e isso criou uma revolução no mercado e todo o sistema produtivo. Ao ter esse contato, tive a oportunidade de estudar a história e observar como a indústria, em especial a têxtil, impacta a vida das pessoas. Isso acontece desde os primórdios, quando faltava roupa para todo mundo. Um casaco era uma coisa deixada através de um testamento para alguém porque era uma coisa muito valiosa. Hoje, o deserto do Atacama está sendo soterrado por sobras de roupas do mundo inteiro, especialmente dos Estados Unidos e da Europa, que são clandestinamente depositadas lá. A indústria têxtil atualmente é um gigantesco problema ambiental porque ela produz muito mais do que necessitamos e joga isso tudo no lixo. A experiência na indústria me deu uma compreensão muito grande do mundo e de soluções materiais, de estamparia, da construção de tecidos, acabo usando isso. Aqueles tecidos, véus [da exposição no CIC], são resultado da minha experiência. A educação entra de outra forma. Fui uma criança que continuou a desenhar depois de ter aprendido a ler. Em geral, crianças aprendem a ler e param de desenhar. Depois, encontrei muitos adultos que eram frustrados com isso e gostariam de saber desenhar. Então, eu acabei virando uma professora muito cedo, com 18 anos. Minha relação com a pedagogia está muito associada com encorajamento. Não acredito que eu ensine alguém a fazer alguma coisa, mas tenho condições de ajudar as pessoas a aprenderem, são coisas diferentes. Entendo que as pessoas já sabem e eu posso ajudá-las a entender isso. Acho que isso influencia a arte, porque ela sempre vai depender de uma outra pessoa que veja e se emocione com aquilo. A coisa sempre vai estar na troca. E a educação é um sistema de troca muito eficiente, a gente cresce muito quando aprende. Talvez nossa compreensão de pedagogia, nesse momento, ainda seja muito funcionalista. Parece que se faz até a faculdade e daí acaba. E, na verdade, não. Temos a possibilidade de continuar aprendendo pela vida toda. Talvez não no preparo para uma profissão, mas um preparo para a vida.

CADERNO EXPRESSÕES – Como a senhora enxerga a sua arte?

CELAINE – Fiquei muito tempo da minha vida pensando: “Tenho uma voz de artista. Sobre o que falo com ela?” Estamos vivendo um momento em que a arte trabalha com protesto, denúncia, apresentação do que não funciona no mundo. O meu trabalho vai por outro caminho. Acho que ele fala de saudade, aquelas pinturas bonitas e coloridas. Quase não existe mais isso, é raro, incomum. A gente olha, acha muito bonito, e dá uma sensação de frescor e tranquilidade. Lembramos que não há mais muito disso. Vim hoje de Pomerode para cá [Florianópolis]. A estrada é uma coisa contínua e feia. Tem muita gente sofrendo ao longo dela. Há um “enfeiamento” gigantesco. A natureza vem sendo substituída por coisas que estão decadentes, meio caídas, quebradas e destruídas, ou um monte de propaganda, publicidade. Então, não é bonito. As coisas eram tão bonitas há pouco tempo. E sou uma artista que estuda temas. Gosto de geografia, história e política. Na hora que eu vou pintar, eu não penso em uma cena que eu vou pintar. Não tenho uma pretensão de ter uma imagem mental e tirar essa imagem de dentro da minha cabeça através da pintura. Vou pintando e me relaciono mais com os assuntos que estou trabalhando. Por exemplo, um dos trabalhos que está na exposição [no CIC] se chama Visões de Humboldt no Orinoco. Humboldt foi um pesquisador da Prússia que veio para a América Latina em 1799. Ele chegou na Colômbia e ficou cinco anos vivendo por aqui. Passa pelo México, Cuba, chega até os Estados Unidos. O Orinoco é um rio da Venezuela que nunca nenhum europeu tinha passado. Ele foi o primeiro a passar. E ele fez um diário contando o que viu. Achei isso um assombro porque a gente nunca vai ver aquilo que ele viu, não existe mais. O rio agora é feio, está destruído. Vou trabalhando com a tinta, sobrepondo camadas, e a tinta vai dizendo o que é. É um trabalho que demora bastante. 

Visões de Humboldt no Orinoco e Visões de Humboldt no Orinoco II por Celaine Refosco estão expostos no CIC. (Foto: Ana Muniz)

CADERNO EXPRESSÕES – Uma coisa que chama a atenção em suas  obras é o uso de vários materiais e instrumentos. Por que usar uma variedade tão grande de técnicas?

CELAINE – É uma coisa que vai dando vontade. Tive que esperar muito tempo para fazer isso exclusivamente, passar os dias inteiros pintando. Quando chegou a hora eu falei “vou fazer o que eu quero, o que não pude fazer antes”. Inclusive, os tamanhos grandes. Sempre tive muita vontade de trabalhar com isso e não dava, porque não tinha condições, tempo, espaço ou dinheiro. E agora dá. Então vou fazer o que quero e vou experimentar tudo. O trabalho é um momento sempre emocionante, em que dá pouco sono. É um trabalho pouco “criança”, sabe? E daí saem coisas muito diferentes. Depois olho e falo “ah, não serve”, “não faz sentido”. Mas para uma série de coisas, digo, “isso aqui é legal”. Há muito mais produção do que se mostra, muita coisa não entra. Também existe muita descoberta. Eu trabalho, basicamente, com duas tintas ali [na exposição]. Uma acrílica, que está sobre os véus, e há carvão ali também; e a outra é a tinta a óleo. É um material misterioso e amplo. É uma tinta grande e forte. Então, merecia estudo. Fiquei muito tempo dedicada a entender sobre a tinta. Usei estêncil na tinta a óleo, por exemplo, uma coisa que “oficialmente” não se utiliza. Talvez me senti mais criança ali do que em qualquer outro momento. Foi um trabalho muito alegre.

Exposição do Prêmio AF de Arte Contemporânea 2024 conta com trabalhos de Celaine feitos sobre tules. (Foto: Vini Waknin)

CADERNO EXPRESSÕES – O que vencer essa premiação significa para a sua trajetória?

CELAINE – Simboliza uma coisa interessante, talvez a mais importante: que não desisti de fazer o que gostaria de fazer. Eu me sinto uma pessoa muito conciliada com a criança que fui. Faço as coisas que queria fazer quando criança. Eu poderia ter falado em inúmeros momentos que nunca ia dar certo e ter desistido. E acho que não desistir é uma coisa linda. Percebo, como educadora, que, quando as pessoas desistem de fazer o que elas queriam, elas adoecem. É muito frequente que fiquem doentes, tristes, bravas ou nervosas. Eu continuaria fazendo, mesmo que não fosse premiada e não expusesse. Continuaria porque o grande prazer da minha vida está relacionado a isso. Acho que desenho e pinto como uma criança faz. Pinto porque gosto de fazer aquilo. Ter sido premiada com isso me traz uma resposta sobre o valor de persistir. Também aponto a profissionalização e ampliação. Ir para essa residência de trabalho em Paris significa que vou poder conhecer e falar com muita gente, ver coisas que nunca vi. O que estudei de História da Arte foi em livros. Tive poucas oportunidades de estar na Europa, a não ser a trabalho. Quando estudamos através de um livro, vemos todas as fotos do mesmo tamanho. Depois você chega [pessoalmente] e um trabalho é imenso, outro é pequeno. É uma coisa muito alegre, sem dúvida alguma, e a proximidade com outras pessoas traz um momento de expansão. É como uma abertura. Como se alguém dissesse: “você trabalhou forte até aqui, então continua”. 


Ana Muniz

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e editora-chefe do Caderno Cultural Expressões.

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