Show do Lagum ilustra a potência do encontro por meio da música

Ensaio por Júlia Graboski

Pedro Calais performando a música “A cidade”, 3 faixa do novo álbum – Foto: Júlia Graboski

“Dois bobos (apaixonados?) perambulando pela vida, dizendo: O que é um coração temporário? Foi o que escrevi no vidro embaçado, naquela última vez, naquele mesmo horário.” Anotei isso no dia 10 de agosto deste ano, nas notas do celular, voltando do show do Lagum, em Jurerê. Durante o trajeto, percebi como certos momentos, quando estamos conectados à arte, têm o poder de transformar o ordinário em algo quase sagrado. Cada música parece suspender o tempo, lembrando-nos de que a vida é, em sua essência, uma sequência de batimentos provisórios.

O show, que estava marcado para começar às 19h, atrasou uns 30 minutos. Nada fora do normal para esse tipo de evento. A parte boa é que, enquanto esperávamos, dava para curtir outros músicos que se apresentavam nos “palcos menores”. Coloco as aspas porque, na realidade, todos os palcos eram pequenos. O evento aconteceu em um terreno com bastante barro, atrás do hotel Il Campanario, mas até que deu conta do público. Não há números oficiais, mas, pelo que vi, deveria ter mais ou menos umas 250 pessoas.

Gosto muito de shows, de música, sempre gostei. Acho que ela é a forma mais fácil de expressar o que se sente — e não me refiro apenas às palavras. Às vezes, uma nota de violão já diz muita coisa. Música é memória, pertencimento, um sentimento que se espalha sem precisar de explicações. Gosto de música brasileira, de ouvir alguém, em plenos pulmões, cantar o que no dia a dia se tenta esconder, que brinca e dança com as palavras, explora os sentidos e a subjetividade que poucas línguas conseguem transmitir, mas que a nossa esbanja. 

Há algo mágico nesse jeito de verbalizar a vida, misturar riso e tristeza, saudade e festa, melancolia e alegria em uma mesma canção. Talvez seja justamente essa fusão de opostos que torna a música brasileira tão singular — ela não escolhe entre o que é bom ou ruim, mas os costura, e assim, nos oferece um espelho da própria complexidade de ser brasileiro.

Acho que nos tornamos especialistas em evitar situações que não nos agradam, em nos afastar de pessoas que não compartilham dos mesmos valores que os nossos, filtrar amizades e lugares, mudar de assunto ou simplesmente acenar com a cabeça. Essa habilidade de escapar, muitas vezes, parece um mecanismo de defesa diante da vida social. Confesso que, em circunstâncias diferentes, tenderia a me afastar da maioria das pessoas presentes no evento, pois, como muitos, costumo julgar o livro pela capa.

Entretanto, quando Pedro Calais, vocalista da banda, subiu ao palco para cantar “Eterno Agora”, primeira faixa do álbum “As cores, as curvas e as dores do mundo”, algo aconteceu. As vozes, antes dispersas, entrelaçaram-se em um coro espontâneo, quase ritualístico. O que antes era apenas um bando de desconhecidos, se tornou uma coletividade momentânea, unida por um propósito comum: a experiência estética de gostar do mesmo grupo.

Esse instante, talvez revele muito sobre a cultura brasileira e sua forma de vivenciar a arte. A música cria uma espécie de esfera pública afetiva, onde se constrói sentido coletivo. Em poucos minutos, a diferença que nos separava se dissolve, e passamos a respirar juntos, como parte de uma mesma energia. O show, nesse sentido, ultrapassa a dimensão do espetáculo e se converte em um espaço simbólico de pertencimento, em que o tempo parece suspenso, para nos lembrar da potência do encontro humano.

Marilene Chaui defende que a cidadania não se limita ao exercício formal de direitos, mas envolve a capacidade de perceber, refletir e participar ativamente do mundo em que vivemos. Assistir a um show como o do Lagum é, nesse sentido, um pequeno ato de cidadania estética. Nos tornamos sujeitos capazes de reconhecer a pluralidade de sentimentos, de perceber o outro e de nos engajar em experiências coletivas que expandem nossa percepção do social e do político.

O público, unido pela música, transforma o espetáculo em um laboratório de convivência e empatia, um espaço onde a arte e a crítica se encontram sem a necessidade de discursos formais. Assim, a banda não apenas diverte, mas também participa de um processo cultural que, silenciosa ou explicitamente, contribui para a formação de uma consciência mais sensível e, na minha opinião, crítica. 

Na volta para casa, observei as pessoas, os risos abafados nas esquinas, casais atravessando a rua de mãos dadas, alguém sentado sozinho na calçada. Pensei que, talvez, todos carregássemos um “coração temporário”, não no sentido de fragilidade, mas de movimento. O coração, afinal, não é estático, pulsa, acelera, desacelera, se abre e se fecha, muda de compasso.

“Escrever no vidro embaçado” foi a minha forma de verbalizar que queria congelar aquele instante, mas percebo agora que o valor não estava em fixar a lembrança, e sim em deixá-la escapar, sabendo que se repetiria de outro jeito, em outra ocasião, com outras pessoas. Talvez seja isso que a música ensine, que não existe permanência sem passagem.

Espero que em algum lugar dois bobos (apaixonados?), perambulando pela vida, sigam escrevendo perguntas em vidros embaçados — ou poemas em um celular quase sem bateria, mesmo sabendo que se pode apagar tudo. Porque, no fundo, é esse gesto que transforma o temporário em eterno, pelo menos para mim. 


Julia Graboski

Estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, adora fotografia, cinema e literatura.

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