Por: Alice Maciel
A Prefeitura de Florianópolis, sob a gestão do prefeito Topázio Neto, confirmou a elaboração de um Plano de Desenvolvimento Turístico para o segundo semestre de 2025 que prevê concessão para a iniciativa privada de 100 atrativos turísticos da cidade, incluindo praças, unidades de conservação e trilhas públicas. O objetivo declarado é transformar esses espaços em “produtos turísticos” e modernizar a infraestrutura local, afirmando que as concessões não configuram privatização e que o acesso seguirá gratuito, mas que a manutenção será custeada pelas empresas privadas.

O plano, elaborado com parceria do Sebrae e do setor turístico, inclui concessão da gestão de trilhas em unidades de conservação como a Galheta, Lagoinha do Leste e Naufragados, além da implantação de infraestrutura em dunas, mirantes, e da criação do Parque Natural Municipal da Ilha do Campeche e do Parque Urbano e Marina Beira Mar
Francisco do Vale Pereira, historiador e museólogo do Núcleo de Estudos Açorianos (NEA) da UFSC, explica que o processo de “gourmetização” de tradições locais é um vício do mundo contemporâneo, pois tende a transformar práticas populares em produtos esteticamente elaborados e distantes de suas origens comunitárias. Ele lembra que os bens patrimoniais da cidade pertencem à própria população e que sua preservação depende da manutenção do vínculo com os grupos que lhes dão sentido e identidade.
Como exemplo, Pereira cita a decisão da Câmara de Vereadores que transformou toda a Ilha de Santa Catarina em área urbana, buscando aumentar a arrecadação de IPTU. A medida, segundo ele, desestruturou modos de vida rurais e interrompeu tradições seculares, como a da farinhada — mutirão comunitário em que famílias se reuniam para raspar, prensar e torrar a mandioca, base da alimentação e da convivência nas antigas comunidades da Ilha. Ao eliminar os espaços de cultivo, observa o pesquisador, o poder público também rompeu a cadeia cultural que mantinha viva essa prática coletiva, demonstrando como decisões administrativas podem romper cadeias culturais centenárias.
Trilhar, pagar, perder: a lógica das concessões
Um dos pontos mais controversos do plano é a concessão da gestão de trilhas em Unidades de Conservação para empresas privadas. Trilhas emblemáticas, como as da Praia da Galheta, Lagoinha do Leste e Naufragados, podem ter sua administração terceirizada. O que está em jogo vai muito além do turismo: a privatização de espaços públicos e naturais bota em cheque tradições e práticas culturais que moldaram a identidade dos manézinhos e catarinenses.

Imagem ilustrativa. (Foto: Christian von Koenig)
As Unidades de Conservação (UC) como o Parque Natural Municipal da Lagoinha do Leste visam principalmente preservar a biodiversidade e os chamados serviços ecossistêmicos, que incluem desde a proteção de nascentes até a regulação do clima. A cidade de Florianópolis conta atualmente com dez UCs municipais, que garantem, além da conservação ambiental, o acesso democrático a espaços naturais para lazer, esporte e cultura.
A preocupação se intensifica ao analisar o impacto nas comunidades tradicionais que dependem economicamente desses espaços. Pequenos comerciantes locais, guias comunitários, artesãos e produtores de alimentos típicos que mantêm viva a cultura açoriana e outras tradições locais estão à margem, correndo risco de perder seu espaço para grandes empresas com maior poder econômico.
Francisco do Vale Pereira reforça essa preocupação:
“Sem a participação das comunidades, dos fazedores de culturas, dos mestres e mestras dos saberes e fazeres, sem a participação dos agentes culturais, não há cultura popular, não há cultura local, não há referências culturais, nem locais e territórios para as expressões culturais tradicionais e comunitárias”
Um exemplo já em curso é o da Lagoa do Peri, onde há cobrança para estacionar veículos dentro da área de conservação. Para o especialista do NEA, “o turismo sem o turismo de base comunitária, e sem a participação da comunidade tradicional será sempre o turismo do consumo imediato, de exploração econômica, e de fantasias — sem a vivência e sem a realidade local que somente quem vive nesses espaços de referências culturais locais pode apresentar”.
O preço da privatização
Os exemplos de outras cidades brasileiras que adotaram modelos semelhantes de privatização mostram resultados preocupantes. No Parque Nacional do Iguaçu, houve um aumento significativo nos preços de ingressos após a concessão à iniciativa privada, dificultando o acesso da população local. Em Fernando de Noronha, a elitização do turismo após medidas de privatização levou a uma gradual descaracterização da cultura local, adaptada agora para atender às expectativas de um público de alto poder aquisitivo.

Imagem ilustrativa. (Foto: Christian von Koenig)
Casos semelhantes nos Parques Nacionais de Aparados da Serra (RS) e Serra Geral (SC/RS) mostram que o ingresso para visitar os parques ultrapassa R$ 100, sem contar o estacionamento pago e o alto custo de lanches e lembranças nas lojas instaladas após a privatização.
“É uma forma sutil de colonização contemporânea”, afirma Paulo Horta, biólogo e professor da UFSC. Sua preocupação é com as transformações — de cultura a produto de consumo — que são regidas pelas forças do mercado, e não pelas dinâmicas sociais que naturalmente a desenvolveram.
Pereira confirma essa preocupação com um exemplo de local emblemático: a construção de um espaço de eventos à beira-mar que escondeu e afastou a vida da cidade do mar. “Já não há a paisagem cultural da ligação da Catedral, e da Praça XV de Novembro com o mar. O [bar e restaurante] Miramar foi demolido para a chegada do progresso, lamenta o historiador, referindo-se ao antigo ponto de chegada e partida da ligação da Ilha com o Continente.
Turismo excludente
Outra questão em jogo, ressaltada pelo especialista, é a construção da marina na Beira Mar Norte. “Não é construindo uma marina na Beira Mar Norte que isso será uma reparação nem cultural, nem histórica”, critica Pereira. “Essa marina será para atender uma pequena quantidade de pessoas que já não encontram espaços para deixar as suas lanchas de pequeno e médio porte no Clube Veleiros da Ilha.”

Imagem ilustrativa. (Foto: Christian von Koenig)
O historiador explica que a localização da marina não permite barcos de grande porte devido à profundidade limitada da Baía Norte, e que “nesse bojo de uma marina não há qualquer perspectiva de se restabelecer uma conexão da população de Florianópolis com o mar”. Para ele, uma marina deveria ser construída na parte leste da Ilha, voltada para o oceano, priorizando a mobilidade urbana pelo mar.
Gestão pública versus lucro privado
A justificativa da Prefeitura de Florianópolis é que a concessão traria melhorias nos serviços turísticos, “sem custo” para os cofres públicos. A diretora de Projetos da Secretaria Municipal de Turismo justificou a proposta afirmando que a cidade não possui estrutura suficiente para manter todos esses espaços.

Imagem ilustrativa. (Foto: Christian von Koenig)
No entanto, críticos da proposta lembram que o orçamento municipal é financiado com os impostos da população e que a gestão de espaços naturais deve ser uma responsabilidade do Estado. “Na prática, pagamos duas vezes: nos impostos e nos ingressos. Além disso, a ideia de custo zero ignora o valor imaterial desses espaços culturais, sociais e ecológicos,que não cabem numa planilha financeira”, aponta Rejane Carneiro, moradora do Campeche, no Sul da Ilha. “Os turistas vêm a Florianópolis justamente para conhecer nossa maneira de viver, nossa culinária, nossas festas e tradições. Se transformarmos tudo em uma experiência padronizada e comercial, perdemos o que torna isso especial”.
O que está em jogo vai muito além da simples gestão de atrativos turísticos. Trata-se da preservação de uma forma única de viver, de se relacionar com o território e de compreender o mundo, elementos que, uma vez perdidos no processo de homogeneização cultural promovido pela lógica do mercado, dificilmente podem ser recuperados.
Pereira conclui que “não é trazendo o investimento privado para os espaços de referência cultural, sem a parceria, sem a interferência, sem a participação efetiva na gestão desses espaços das comunidades tradicionais e locais, que se fará a dinamização, preservação e salvaguarda das culturas locais”.
A história de Florianópolis e de Santa Catarina está em um ponto de inflexão. A maneira como a sociedade civil e o poder público responderão a esse desafio determinará não apenas o futuro econômico da região, mas também sua autenticidade cultural para as próximas gerações. Como alertam os movimentos sociais, as culturas locais “serão invisibilizadas em detrimento daquilo que se explora como sendo turismo”, caso não haja participação efetiva das comunidades tradicionais nas decisões sobre o futuro de seus territórios.
Deixe um comentário