Maria Victória Sampaio
O carnaval, ao contrário do que muitos pensam, não é somente uma festa. É um espaço livre para manifestação popular, pedagogia e reafirmação. Seja nas quadras ou nas avenidas, as escolas de samba constroem, há décadas, narrativas poderosas sobre pertencimento, dignidade e inclusão. Mais do que isso, os grupos carnavalescos representam ambientes em que a cultura negra resiste e reivindica seu lugar, não apenas como movimento social, mas como protagonista viva da história do Brasil. Promover este debate foi o principal objetivo da roda de conversa “Escola de samba, escola de vida: O pluriverso das Escolas de Samba como Espaços de Inclusão e Cidadania”.
Para o organizador do evento, graduando de Ciências Sociais da UFSC, membro da Liga das Escolas de Samba de Florianópolis (LIESF) e da Federação Nacional das Escolas de Samba, Jeferson Costa, um dos principais intuitos da ação é de dar ênfase ao aspecto popular e diverso da celebração. “O desfile é esse cortejo negro que conta as nossas histórias. E quando há pessoas que pagam milhares de reais em camarotes para escutar outros tipos de música e não assistir às escolas passando na avenida, somos, particularmente, bem críticos e resistentes em relação a isso”, afirma.

O evento ocorreu em 23 de setembro, das 19h às 22h, no Centro de Cultura e Eventos, localizado no campus Trindade, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis. A mesa redonda, que foi gratuita e aberta ao público, fez parte da programação da 10° edição do “Experimenta”, evento que leva oficinas, performances e atrações variadas ao público geral e à comunidade acadêmica, realizado pela Secretaria de Cultura, Arte e Esporte da UFSC. A roda de conversa reuniu profissionais que atuam na área da festividade, como compositores, cantores, além de reis momos e rainhas de escolas diferentes da Ilha.
Musicalidade da negritude
Para Costa, temáticas como negritude e inclusão são as mais importantes a serem abordadas no âmbito carnavalesco. “Mesmo com tantos assuntos importantes e urgentes, as questões afro centradas são muito relevantes e merecem ser tratadas com destaque nos enredos do carnaval”. A respeito da integração entre a festividade, meio acadêmico e samba, o graduando diz que, a partir da oportunidade de participar do “Experimenta” com uma mesa redonda que aborda esses assuntos, há uma maior troca de saberes entre pessoas com diferentes vivências e perspectivas. “Vejo que, enquanto a universidade produz pesquisa, a sabedoria popular é a protagonista desses estudos, então é uma junção perfeita”.
Sobre sambas-enredo, Costa diz que a importância da música carnavalesca é a promoção do aprendizado popular e da multiplicidade de pontos de vista. “As músicas abrem espaço para as histórias que não estão nos livros oficiais, daqueles que sofreram para conquistar liberdade. Quando os enredos falam sobre intolerância religiosa e personalidades importantes do Brasil, eles educam as pessoas”. Para ele, as alegorias, danças, representações e canções presentes no carnaval são elementos fundamentais para entrar em contato e dialogar com diferentes pessoas.
O que há por trás do rufar dos tambores em fevereiro?
Além de pautar representatividade e cultura negra, o evento também levantou questões importantes que permeiam o cotidiano dos que trabalham na área. Para Milton Lemos, também membro da LIESF e integrante da velha-guarda do grupo carnavalesco Consulado, campeão do carnaval 2025 de Florianópolis, outro ponto que deve ser colocado em debate é a falta de valorização às histórias das escolas de samba. “Hoje em dia, se perguntar para jovens, poucos irão saber a história da escola que fazem parte. Todos devem conhecer e estudar o caminho percorrido e os valores de suas escolas, não só pela tradição, mas por respeito à trajetória de cada um dos grupos”.
Em relação aos múltiplos esforços de trabalho que constituem a comemoração, Lemos explica que aqueles que pensam que época de carnaval é somente em fevereiro, estão profundamente enganados. “Para nós, o carnaval nunca acaba. Logo depois do fim de um, já começamos a produzir e ensaiar de novo, até o próximo chegar. É trabalho o ano todo”, detalha. Em sua visão, as escolas atuam em projetos sociais ligados às comunidades e que, ao contrário do que é transmitido na mídia hegemônica e do senso comum geral estabelecido no Brasil, carnaval não é só sobre festa e desfile, mas sim, sobre formação e integração social de indivíduos.
Diversidade e figura feminina no carnaval
Durante os desfiles de carnaval em todo o Brasil, por trás das fantasias luxuosas, maquiagens especiais e das danças eufóricas, há uma questão que, muitas vezes, passa despercebida: a objetificação das mulheres na festividade. Giselle Marques, arte-educadora e escritora presente no evento, falou a respeito do caráter essencial da educação e dos ensinamentos pedagógicos relacionados à história carnavalesca, às diferentes formas de vivenciar a festividade e de ver o corpo feminino na sociedade. A escritora comentou que a maneira de perceber, representar e respeitar os corpos femininos socialmente, principalmente das mulheres negras, é construída desde cedo. “Deve vir da base, da coletividade. Nós temos a lei 11.645, que traz a obrigatoriedade de falar das questões afro centradas nas escolas. Sem isso, não há como se debater sobre o espaço e dignidade das mulheres negras na sociedade e no carnaval”.
O assunto levantado por Giselle durante a conversa proporcionou reflexões e desdobramentos importantes ao longo das três horas de duração da mesa redonda. Isto porque, outra convidada que marcou presença no evento, Patricia Fonttine, primeira musa trans do carnaval de Florianópolis, representando a escola de samba Dascuia, discutiu sobre a rivalidade feminina na celebração. “Há sempre comentários como: ‘Sua fantasia não é mais bonita que a minha’ ou ‘Tu não é mais bonita que eu’ e esse tipo de coisa, infelizmente, é bem comum”.
“O nosso futuro vem de longe”: Congresso Nacional das Escolas de Samba marcou presença em Florianópolis
Os debates a respeito da importância do carnaval não se encerraram na programação do “Experimenta” da UFSC. Entre os dias 26 e 28 de setembro, ocorreu no Centro de Cultura e Eventos da universidade o Congresso Nacional das Escolas de Samba (CONASAMBA), que teve sua segunda edição seguida em Florianópolis. Com a temática principal “Sankofa” — mito africano de um pássaro que possui a cabeça virada para trás e os pés voltados para frente —, que simboliza a importância de aprender com o passado para construir um futuro melhor e marcou o slogan do congresso “nosso futuro vem de longe”, o evento contou com mais de dez mesas temáticas durante os dois dias de programação, além da presença de personalidades de destaque da indústria carnavalesca, como o carnavalesco e comentarista do carnaval do Rio de Janeiro, Milton Cunha.
A mesa de debate “Carnaval: um negócio que dá Samba”, realizada em 27 de setembro, teve como tema principal o aspecto financeiro e organizacional da festividade, trazendo à luz discussões a respeito de captação de recursos e da importância da mão de obra de trabalhadores especializados no ramo. Segundo David Lima dos Santos, um dos palestrantes presentes na roda de conversa, CEO da Rio Criativo, empresa responsável por auxiliar grupos e entidades populares a viabilizar e estruturar projetos diversos, as leis de incentivo e patrocínios no Brasil precisam englobar com mais frequência o mercado carnavalesco. “As políticas de fomento ainda não chegam aos grupos de segmentos populares e nem aos artistas periféricos ou aos trabalhadores de cultura. Esse é um grande desafio”.

As escolas de samba são o segmento que mais garantem cultura para comunidades, principalmente em áreas de violência e vulnerabilidade, movimentam figurinistas, ateliês, costureiras, na favela e nos subúrbios e, segundo o empresário, esse é o ramo que mais promoveu atividades de cultura contínuas ao longo dos últimos vinte anos no Brasil. “A gente precisa criar entendimento com o poder público que a área das escolas de samba deve possuir reserva de recursos em qualquer política pública federal, porque nenhum outro setor leva tanta cultura gratuita ao povo como as escolas de samba e o carnaval”.
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