Campeã mundial de patins ensina o esporte gratuitamente em Florianópolis

Nicoly Machado, primeira brasileira a vencer a modalidade bowl da competição, ajuda a formar uma nova geração sobre rodas

Reportagem por Raissa Hübner

O projeto Crias do Abraão, liderado por Nicoly Machado, reuniu crianças da comunidade vizinha à pista, que passaram a treinar com patins doados sob orientação da atleta. (Foto: Felipe Zambardino).

Antes de cruzar o oceano rumo ao Mundial de Patins, Nicoly Machado, com apenas 17 anos, já transformava vidas na comunidade em frente à Pista do Abraão, em Florianópolis. Com patins doados e uma enorme vontade de compartilhar o que sabia, ela ensinava crianças da região a deslizar e fazer manobras sobre rodas, de graça, todos os dias. O projeto durou até setembro de 2024, quando embarcou para a Itália. No entanto, a iniciativa não parou por aí. Hoje, ela segue ensinando gratuitamente todos os sábados na Pista Beira-Mar de São José (SC), a cerca de 5 km da ilha, e ainda publica vídeos em diferentes plataformas digitais para quem quer aprender a patinar. “Eu quero ser muito mais do que só uma atleta. Eu quero agregar na vida das pessoas.”

Natural de Biguaçu (SC), a jovem patinadora iniciou sua trajetória aos 11 anos. Após sofrer com crises de ansiedade e ser considerada muito nova para a forte medicação, sua médica recomendou que praticasse algum esporte. Ela começou com um par antigo que tinha em casa, o famoso roller, mas logo descobriu, pesquisando na internet, que precisaria de patins específicos para fazer as manobras que via online, o modelo street. Em uma semana, seu pai negociou com o dono de uma loja: garantiu o par adequado e algumas aulas para a filha. Com o novo equipamento, passou a treinar na pista da Beira-Mar de São José. As crises cessaram, e Nicoly deu início ao caminho que a levaria a se tornar a primeira brasileira campeã mundial de patins.

Com apenas três meses de prática, participou do primeiro campeonato, em São José. Sem saber realizar nenhuma manobra, ainda assim subiu ao pódio. Desde então, acumulou títulos. É tricampeã catarinense (2019, 2022 e 2023), bicampeã brasileira na modalidade street (2022 e 2024), campeã brasileira na modalidade bowl (2024), bicampeã sul-americana bowl (2021 e 2025) e campeã sul-americana street (2025). No Mundial de 2024, realizado na Itália, Nicoly foi a primeira a vencer a categoria bowl, recém-incorporada à competição. Além do ouro, conquistou ainda a prata no street. Na modalidade bowl (tigela, do inglês), os atletas deslizam em pistas côncavas, em formato de bacia, e na modalidade street (rua), fazem as manobras em obstáculos do dia a dia, como corrimãos, bancos e escadas.

Apesar do desempenho, a jovem admite que participa de poucas competições em comparação a outros atletas. “Eu não tenho apoio financeiro suficiente para viajar”, relata. Mesmo contando com patrocínios de marcas, o valor não cobre todos os custos. Para competir na Itália, por exemplo, precisou vender rifas para arrecadar dinheiro. “Existem seleções de outros países que dão dinheiro para os atletas irem, mas o Brasil ainda não chegou nesse patamar”, lamenta. Segundo ela, isso se deve ao fato de o patins ainda ser um esporte pouco conhecido. “O skate agora está muito em alta e o governo dá suporte, mas para o patins não. Os eventos de skate têm muito apoio, o que eu entendo, porque é olímpico. Mas o nosso esporte é super desvalorizado.”

Nicoly treina por cerca de duas horas e meia por dia, inclusive aos finais de semana, e destaca a importância da família em sua trajetória. “Eles sempre me incentivaram. Meu pai acordava às seis da manhã, todos os dias, para ir comigo à pista treinar para o campeonato”. No verão, ele levava guarda-sol para se proteger do sol forte, mas não deixava de acompanhar a filha. “Para mim, é muito satisfatório ver todo o processo de crescimento, de desenvolvimento dela. É motivo de muito orgulho”, afirma o pai, Adriano Machado.

Crias do Abraão e o sonho compartilhado

No fim de 2023, a Pista do Abraão foi inaugurada na região continental de Florianópolis. Nicoly passou a treinar lá e, aos poucos, começou a interagir com crianças da comunidade vizinha. Enquanto a atleta praticava, as crianças a observavam com atenção, até que começaram a se aproximar, conversar e brincar junto. “Eu lembro que tentei muitas vezes uma manobra e desisti. Eles falaram: ‘Nicoly, vai lá, tenta de novo’. Várias crianças ao mesmo tempo. E aí começaram a gritar: ‘vai, Nicoly, a gente tá aqui só pra te ver’”, relembra. Elas pediam seu patins emprestado para tentar também, e ela viu ali um enorme potencial.

A Go Roller, loja para a qual Nicoly produz conteúdo online atualmente, doou patins novos para todas as crianças. Elas praticavam todos os dias e, em pouco tempo, já aprenderam as manobras. “Tinha uma criança que patinava há pouquíssimo tempo, sei lá, há um mês, e mandava mortal pra trás. Coisas absurdas assim”, conta. Dessa forma nasceu o projeto comunitário Crias do Abraão. “A gente tinha um linguajar diferente. Eu falei pra eles: ‘pô, vocês são uns crias, é os crias do Abraão’, porque aqui é o Abraão”, explica.

Com o grupo, viveu experiências marcantes. “Eu levava eles da Pista do Abraão até a Beira-Mar de São José, de patins. A gente cruzava a cidade”, recorda. E a conexão ia além do esporte. “Eu também eduquei eles sobre comportamentos fora do esporte. Eles falavam coisas que não eram legais pra idade deles, e eu fui ensinando. Fui tipo uma mãe”. Nicoly também marcava presença nos aniversários das crianças. “Eu ia ali na comunidade, a gente comemorava. Às vezes eu levava um sacão de Sonho de Valsa pra fazer desafios [de patins]. A gente brincava, era bem massa”, sorri.

“Eu quero que o patins seja uma oportunidade para aquela criança, aquela menina, ver que a vida dela pode ser diferente por causa do esporte, sabe? Assim como foi para mim.”

Segundo ela, as crianças se sentiam muito motivadas quando Nicoly patinava junto. Quando viajou para o Mundial, em setembro de 2024, elas deixaram de frequentar a pista. “Acredito que quando eu viajei por muito tempo, eles desanimaram também. Mas os patins estão lá até hoje. Se quiserem usar, vão patinar.”

Nicoly Machado na Pista do Abraão, local que marcou o início de sua atuação social com crianças da comunidade. (Foto: Raissa Hübner).

Atualmente, continua dando aulas gratuitas aos sábados, agora abertas a todos os públicos. “Quando eu tô na pista com a galera, ajudo as crianças a aprender manobras. Então, não foco só em mim, foco em todo mundo evoluir junto”, destaca. A atleta também compartilha suas técnicas e manobras pela internet, onde reúne quase 400 mil seguidores no Instagram, 572 mil no TikTok e quase 70 mil inscritos em seu canal do YouTube. “Quero trazer conteúdos informativos pra galera aprender a patinar.”

Algumas modalidades de patins, como as que Nicoly pratica, ainda não são esportes olímpicos, mas ela sonha com o dia em que serão. E me contou isso, no final da nossa conversa, com lágrimas nos olhos. “Dá vontade de chorar, porque é algo que eu almejo muito”, confessa. Ela imagina um futuro em que patinará até não conseguir mais, por conta da idade. “O patins é meu objetivo de vida, sabe? Vou patinar até morrer, se eu puder.”


Raissa Hübner

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *