Ana Muniz e Matheus Alves
Erguidas em ilhas remotas e picos de difícil acesso, as fortalezas de Santa Catarina são construções ímpares no passado e no presente do estado. Elas fazem parte da história catarinense desde o período colonial e hoje presenciam os dilemas do mundo contemporâneo. Essas mudanças afetaram diretamente as funções exercidas por esses edifícios ao longo dos últimos 300 anos, que, em suas próprias limitações, também se transformaram.
Localizadas em um ponto estratégico da Baía Norte da Ilha de Santa Catarina, as fortalezas de São José da Ponta Grossa (Praia do Forte), Santa Cruz (Ilha de Anhatomirim) e Santo Antônio (Ilha de Ratones Grande) compõem o sistema defensivo batizado de “Triângulo de Fogo”. Essas construções — que antes foram símbolo de um período colonialista e escravagista — funcionam hoje como espaço cultural, centro de exposição e turismo. Em 2024, mais de 118 mil pessoas visitaram as fortificações.
Como Patrimônio Histórico Nacional e atual propriedade gerida pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), as três fortalezas ganharam funções completamente distintas do seu projeto inicial. Roberto Tonera, arquiteto aposentado pela Universidade, acredita que ainda mais pode ser explorado nas construções. Após mais de 30 anos trabalhando com as fortalezas, ele afirma que elas “podem ser uma ferramenta de educação — não para contar uma história do vencedor, mas contar a história com os contrapontos necessários que devem ser feitos hoje em qualquer situação histórica”.
Da edificação ao esquecimento
Apesar de não terem passado por grandes batalhas, os edifícios encontravam-se em estado de completo abandono, em ruínas. Até 1979, quando a UFSC ganhou tutela das construções, o destino das fortalezas era incerto após terem sido deixadas pelos militares. Idealizado pelo brigadeiro português José da Silva Paes, designado primeiro governador da Capitania em 1738, o Sistema Defensivo da Ilha de Santa Catarina era a principal forma de proteção contra possíveis ataques de frotas espanholas.
A região do Desterro era considerada privilegiada, utilizada por navegadores como ponto de passagem e reabastecimento durante viagens ao Rio da Prata, no Uruguai. Para a coroa portuguesa, era imprescindível a presença militar nessa rota, garantindo a soberania de Portugal sobre as terras ao sul da colônia.
Apesar dos esforços, a Ilha de Santa Catarina foi invadida e tomada pela Espanha entre 1776 e 1777. Comandados por Dom Pedro de Cevallos, mais de 11 mil homens desembarcaram na Vila da Nossa Senhora do Desterro após a derrota das três fortalezas do Triângulo de Fogo. A Ilha de Santa Catarina, agora abandonada por sua população e pela campanha militar portuguesa, só voltou a fazer parte da colônia de Portugal após um ato diplomático dado por meio da assinatura do Tratado de Santo Idelfonso, ainda em 1777.
Com o fim dos conflitos, os edifícios perderam gradualmente suas funções. Tudo se agravou depois da evolução da artilharia e das mudanças nas estratégias de defesa durante a Primeira Guerra. Não havia mais sentido manter construções tão caras e limitadas — pois foram construídas para combate naval — em uma época na qual guerras foram vencidas pelo impacto das forças aéreas. “A forma de guerrear mudou. Do ponto de vista bélico, as fortalezas passaram a ser obsoletas”, pondera Tonera. As fortificações deixaram de ter função militar, sendo abandonadas em toda a margem litorânea.
Não apenas em Santa Catarina, mas por todo território brasileiro, não havia preocupação das Forças Armadas de cultuar a sua própria memória, preservar esses locais históricos e mantê-los para si. Segundo Tonera, também não houve iniciativa de entender essas construções como patrimônio histórico, embora os fortes já fossem declarados como tal desde 1938, quando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) tombou esses monumentos, mesmo estando arruinados.
Quase meio milênio depois de terem sido erguidas e após uma série de renovações, as fortalezas ainda carregam várias características arquitetônicas do seu projeto original. Isso é perceptível, pois existem algumas ruínas que não foram recuperadas. Não havia elementos documentais suficientes, seja de projetos gráficos ou textos e arquivos que permitissem entender todas as peculiaridades do plano de construção inicial.
“Então, para não restaurar de uma forma completamente sem contexto, sem informação mínima necessária, elas foram deixadas preservadas como ruínas”, relata. Esse é o caso da Casa da Palamenta e cozinha da tropa, em São José da Ponta Grossa; do Paiol da Pólvora — de Ratones; assim como da casa do viveiro e do faroleiro, da Fortaleza de Anhatomirim. Hoje, essas características do passado se misturam com a modernidade trazida por ações da Universidade para tornar esses locais algo a mais do que apenas memórias de um tempo distante, mas sim novos espaços de pesquisa, cultura e extensão acadêmica.
Fortalezas da UFSC
A UFSC é responsável pela gestão, manutenção e conservação das fortalezas de Santa Cruz, São José da Ponta Grossa e Santo Antônio há 33 anos. Essas tarefas são papel da Coordenadoria das Fortalezas da Ilha de Santa Catarina (CFISC), setor vinculado à Secretaria de Cultura, Arte e Esporte (SeCArtE) da universidade.
Antes, a coordenadoria era conhecida como “Projeto Fortalezas”. A denominação é derivada de uma restauração das fortificações, coordenada pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da UFSC. Esse projeto de revitalização, realizado entre 1972 e 1988, foi financiado pela Fundação Banco do Brasil, com um convênio que valia aproximadamente um milhão de dólares. Além de restaurar as três fortalezas hoje gerenciadas pela UFSC, a iniciativa também visava a consolidação das ruínas da Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição de Araçatuba. A UFSC elaborou os projetos de restauração e engenharia junto ao IPHAN.
Santa Cruz já era gerenciada pela universidade desde 1979. Santo Antônio e São José da Ponta Grossa só passaram às mãos da UFSC em 1991 e 1992, respectivamente. Mesmo após a conclusão do Projeto Fortalezas, o setor da SeCArtE continuou a ser conhecido por esse nome. Em 2016, recebeu o novo nome: Coordenadoria das Fortalezas da Ilha de Santa Catarina.
A gestão da CFISC não exerce apenas a preservação da estrutura das fortificações. O setor também é responsável pela realização de trabalhos educativos e culturais relacionados às fortalezas. Esses projetos incluem livros para adultos e crianças, exposições e o Banco de Dados Internacional sobre Fortificações, idealizado por Roberto Tonera e elaborado desde 2001.
Desafios: acessibilidade e trabalho
Apesar de serem pontos turísticos muito visitados, as fortalezas sofrem com problemas de acessibilidade. Esse obstáculo é maior nas fortificações de Santa Cruz e Santo Antônio, por estarem localizadas em ilhas. Enquanto a UFSC disponibiliza de barco próprio para a equipe da CFISC, ela não oferece deslocamento às fortalezas para o público. “A gente fica à mercê das escunas”, explica Nallan Francisca, arquiteta da coordenadoria. “Só tem elas para fazer esse serviço e é caro, considerando o salário mínimo da população”. Preços de passeios em escunas comerciais com paradas em Anhatomirim e Ratones mudam ao longo do ano. Atualmente, em baixa temporada, valores de ingressos variam entre 94 a 240 reais.
A Fortaleza de São José da Ponta Grossa, situada entre as praias do Forte e Jurerê, pode ser acessada por via terrestre. Porém, o deslocamento até ela é dificultado pelo relevo e por lacunas no transporte público. “Ponta Grossa fica em um local muito difícil de acessar a não ser que você tenha carro, ônibus ali para Jurerê é meio defasado”, afirma Nallan. Não há como chegar ao topo do morro onde a construção está por meio de ônibus, o que pode se tornar um impedimento para algumas pessoas com deficiência, por exemplo.
Além de gastos com transporte, aqueles que visitam as fortificações devem pagar uma taxa de entrada. A inteira custa 16 reais e a meia, oito. A fim de atenuar as barreiras de acessibilidade, a CFISC promove ações como o Dia de Gratuidade, em que a entrada nas fortalezas é gratuita no último domingo de cada mês. A coordenadoria também oferece isenção na entrada para visitas de escolas públicas e entidades filantrópicas. “Toda semana a gente recebe muito ofício a fazer para visitação de escolas”, afirma o coordenador da CFISC, Rodolfo Pimenta. Em 2024, as fortalezas receberam 231 turmas de colégios de Santa Catarina e outros estados, como Rio Grande do Sul e São Paulo.
Rodolfo também destaca a falta de servidores dentro do setor. “Apesar de termos profissionais em várias áreas, como arquitetura e pedagogia, precisávamos de mais outros profissionais, talvez um museólogo ou um historiador”, diz. Atualmente, a CFISC tem oito funcionários e três estagiários. “É um grande desafio gerir três grandes patrimônios históricos com poucos servidores”, reforça o coordenador.
Veja as fotos e saiba mais sobre as fortalezas do “Triângulo de Fogo”:



















Deixe um comentário