Ana Muniz

De Clarice Lispector às Metamorfoses do poeta romano Ovídio; de Oswald de Andrade até As Mil e Uma Noites narradas por Sherazade. Esses são alguns dos trajetos percorridos por Alexandre Nodari, professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em seu novo livro: A literatura como antropologia especulativa.
A obra foi lançada oficialmente na noite de 21 de novembro, em um evento no Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, que reuniu pesquisadores e estudantes de diversas áreas. No encontro, Alexandre falou sobre a ideia central de seu livro: a experiência literária pode ser uma “antropologia especulativa”. Essa concepção surgiu com o ensaio O Conceito de Ficção do escritor argentino Juan José Saer escrito em 1989.
Juan José Saer em
O Conceito de Ficção,
tradução de Luís Eduardo Wexell Machado
[..] podemos definir a ficção, de um modo global, como uma antropologia especulativa. Talvez – não me atrevo a afirmá-lo – esta maneira de concebê-la pudesse neutralizar tantos reducionismos que, a partir do século passado, assediam-na obstinadamente. Entendida assim, a ficção seria capaz não de ignorá-los, mas de assimilá-los, incorporando-os à sua própria essência e despojando-os de suas pretensões de absoluto.
Em seu livro, por meio de um conjunto de ensaios com abordagens ontológicas, genealógicas e comparativas, Alexandre expande a definição de ficção do argentino e desloca entre o “real” e o “ficcional”. Após o evento de lançamento, o Caderno Cultural Expressões conversou com o professor sobre seu novo livro e a antropologia especulativa.
CADERNO EXPRESSÕES – Que caminho você percorreu até chegar nessas interlocuções entre a literatura e a antropologia?
ALEXANDRE – Isso vem de um bom tempo, uns 20 a 25 anos atrás, quando li O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro. Comecei a me interessar pelo estudo dos povos indígenas e passei a estudar a antropofagia de Oswald de Andrade, que foi o objeto da minha dissertação de mestrado. Durante o mestrado, cursei uma disciplina sobre antropologia com o professor Sérgio Medeiros, com quem li o Claude Lévi-Strauss e o Eduardo Viveiros de Castro. Mais tarde, em 2012, Viveiros de Castro me chamou para dar um curso no Museu Nacional com ele sobre a antropofagia de Oswald. Aí abri a minha interlocução com antropólogos propriamente ditos e com a literatura da antropologia, a teoria da antropologia.
CADERNO EXPRESSÕES – Você afirmou que a literatura e a antropologia tem um ponto de origem em comum, que seria os relatos de viagem. Como você explica a relação desses registros com a literatura, especificamente?
ALEXANDRE – A literatura, embora fale de outros mundos, sempre tem um ponto de partida no nosso mundo, mesmo que seja pela linguagem utilizada. As obras literárias não se enquadram em uma distinção rígida entre o real e o imaginário, o verdadeiro e o falso. Essa é uma ideia do Saer [Juan José Saer] que cunha a ideia de antropologia especulativa. Ele diz que a literatura ou a ficção são um tratamento mais complexo da verdade que não se reduzem a uma opção entre o verdadeiro e o falso. Então, não se pode identificar a ficção do lado do falso e tampouco do verdadeiro. É um cruzamento mais complexo dessas duas dimensões.
CADERNO EXPRESSÕES – De que forma a antropologia pode contribuir para o estudo literário e de modo a literatura pode contribuir para o estudo antropológico?
ALEXANDRE – Dentro da teoria da antropologia, já há algum tempo se tem trabalhado o caráter fictício, no sentido de construído, das etnografias e relatos etnográficos; de como o etnógrafo, o antropólogo, precisa inventar para dar conta de uma cultura completamente “outra”. Porque, justamente, se eles acedessem completamente a ela, se tornariam nativos. Então, para traduzir essa cultura na nossa linguagem ou na teoria da antropologia, é necessária uma dose que os próprios antropólogos chamam de ficcional. A importância da literatura para a antropologia, dentro da antropologia, está mais estabelecida e discutida. Na área de estudos literários, há muitos estudos com interfaces entre literatura e antropologia, mas, geralmente, elas são importações de conceitos da antropologia. O que tem acontecido no movimento de que faço parte, mas que me excede, é uma tentativa de repensar essa experiência com o “outro literário” como análoga, não igual, à experiência que um antropólogo tem com o nativo. Um dos principais aprendizados que a gente pode extrair dessa comparação é a ideia, vinda da antropologia, de tomar o outro, o nativo, a sério como sujeito. De algum modo, acho que a gente precisa ou pode aplicar analogamente isso à literatura, de levar a sério o contato com a alteridade, com o “outro literário”, como algo que nos forma, transforma e faz variar nossa própria perspectiva.
CADERNO EXPRESSÕES – No evento, você falou que ler, para você, é uma atividade desgastante, que te consome. O que na leitura causa essa sensação em ti?
ALEXANDRE – Olha, exatamente “o que” varia muito. Mas o que me consome, no sentido positivo, são aquelas obras que me fazem pensar, perder o sono. Não é necessariamente um atributo do enredo ou da forma, não é algo que seja identificável dessa maneira. É algum gatilho de pensamento que ativa em mim. Desde Clarice Lispector, Guimarães Rosa, até a ficção científica.
CADERNO EXPRESSÕES – Como a análise especulativa pode contribuir com questões ou problemas contemporâneos?
ALEXANDRE – Acho que a gente vive uma situação dramática do ponto de vista ambiental. E aí se torna cada vez mais necessário imaginar outros mundos possíveis, outras formas de viver. Daí vem o meu interesse pela antropologia, que estuda povos que vivem de forma completamente diferente. Mas a literatura também nos apresenta outros mundos possíveis. Não necessariamente mundos necessários, podem ser visões distópicas do nosso próprio mundo. É nesse conflito, nesse encontro de mundos, em que a gente compara o nosso mundo a partir de um outro. Esse me parece ser uma grande contribuição se a gente levar a sério esses mundos da literatura e essas comparações que nos faz repensar o nosso próprio mundo. Por isso, eu disse que, para mim, literatura não é fruição, não é para mim. A literatura não me interessa pessoalmente pela beleza, não sei apreciar isso. Ela me interessa justamente porque me faz pensar e ver nosso próprio mundo de outra maneira a partir do contato com o mundo ficcional.
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