“A Substância” mirou na crítica, mas acertou na superficialidade

Com uma execução didática e de mão pesada, o filme de horror corporal tenta se justificar sob a premissa do camp

Bruno Medeiros

A Substância, que chegou aos cinemas brasileiros em setembro deste ano, foi um dos filmes mais comentados do ano. (Foto: Reprodução/Working Title Films/A Good Story)

Elisabeth Sparkle, apresentadora de um programa de televisão de ginástica, é tirada de seu cargo por seu chefe. O motivo é sua idade, algo que faz com que ela compre uma substância misteriosa que promete lhe dar uma versão aprimorada dela mesma. Ela deve revezar, de forma extremamente restrita e pontual, uma semana sendo ela mesma e outra sendo Sue, uma versão supostamente melhorada dela que logo é escolhida para substituir Sparkle na TV. No entanto, o ciclo semanal logo começa a ser desrespeitado, causando graves consequências.

A Substância é a mais nova adição de um cânone que vem se construindo desde 2019 (até, talvez mesmo, antes disso), do qual se integram filmes como Bacurau, Pobres Criaturas, Saltburn, Barbie e Triângulo da Tristeza. O fator comum entre esses filmes é que são sátiras para consumo imediato, feitas de forma condescendente, sem nuance. Todas suas provocações estão visíveis a olho nu, sem nenhuma camada a mais para ser penetrada. É um cinema didático, de mão pesada, cujo propósito parece ser apenas causar um burburinho sobre o conteúdo dado ao público de forma mastigada por um autor que parece temer quaisquer ambiguidades ou transgressões que suas obras possam apresentar.

Anda junto do didatismo a falta de sutileza do filme, que é vista como “camp”. Se manifesta através de personagens que estão lá para enfatizar o drama da personagem principal (como o idoso no restaurante) ou de flashbacks, que são sobreposições em objetos narrativamente importantes, por exemplo. Isso nada mais é que Coralie Fargeat, diretora, produtora e roteirista do filme, na defensiva. É seu escudo, assim como sua forma de impor sua autoridade total no espectador. Ao invés de confiar nele, entrega todas as informações e ainda as justifica sob o verniz do “proposital”. É como se a diretora quisesse que seu filme fosse impossível de ser criticado nesses méritos, já que “era pra ser assim”, ou que “é camp”. É uma postura presente em outras obras do cânone (mais brutalmente em Barbie).

Outra característica do cânone também presente em A Substância é a quantidade de referências e reverências a outros cineastas do passado. Nesse filme, o diretor mais citado não é nem mesmo David Cronenberg (que trabalhou com a sátira dentro do horror corporal de maneira infinitamente mais inteligente em filmes como Videodrome e Crash), mas sim Stanley Kubrick. O diretor, no entanto, é subtraído a planos “bonitos” (leia-se: prontos para serem printados e postados em uma conta de cinema do Instagram; a coloração das cenas também faz com que a diretora acerte em Wes Anderson apesar da mira firme em Kubrick) e a abertura de 2001: Uma Odisseia no Espaço. É uma estetização tosca análoga aos planos engomadinhos de Saltburn (onde tudo deve ser lambuzado em luzes à la Euphoria ou amaciado pela penumbra para não ser demasiadamente explícito) ou às brincadeiras com lentes de Pobres Criaturas. Serve apenas para um espetáculo tecnicista.

Os planos enfeitados de Fargeat também explicitam a sexualização de certos personagens (mais especificamente a de Sue, interpretada por Margaret Qualley), assim como escancaram o desgosto que nós, público, devemos sentir por outros (o caso mais marcante disso é o personagem de Harvey, interpretado por Dennis Quaid). Novamente, é como se Fargeat não confiasse no espectador o suficiente para que cheguemos à conclusão de que Harvey é um personagem escrito e retratado de forma asquerosa. E para aqueles que ousem criticar sua abordagem, há a desculpa de que toda essa desconfiança no público é, na verdade, “camp”, exagero proposital.

O único momento em que o exagero funciona no filme é na sequência em que aparece o Monstro Elisasue, fusão grotesca de Elisabeth e Sue. A participação da criatura no show de Ano Novo do qual Sue participaria torna-se um banho de sangue ao som de Anna von Hausswolff. É eficaz por Fargeat não querer se defender, por ter a diretora abraçando todos os exageros do splatter de forma conservadora para o subgênero. É um raro momento no filme em que o camp não é utilizado como escudo. É um dos momentos em que Fargeat não se importa com didatismo ou as possibilidades do público ter ou não compreendido sua mensagem. Uma pena que, alguns minutos depois, o rosto de Elisabeth, interpretada por Demi Moore, arrasta-se até a estrela da fama da apresentadora, olha para o céu noturno, e é limpo no dia seguinte após se tornar uma gosma.

Termino este texto temendo a próxima adição nesse cânone de sátiras ruins, e pensando, possivelmente, se haverá como mudar isso no futuro. Se até o final dos anos 2020 já tivermos superado produções como A Substância e tivermos retornado a fazer filmes que não utilizem excessivamente de mecanismos de defesa para justificar sua falta de respeito ao espectador, já considero isso uma vitória.


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