As avenidas da França se coloriram de amarelo em outubro de 2018. Mais de 280 mil pessoas protestaram contra, inicialmente, o aumento do preço dos combustíveis. O impacto das mobilizações sociais fortaleceu a esquerda francesa, principalmente o partido de Jean-Luc Mélenchon, o França Insubmissa. Quase seis anos depois, julho de 2024, a Nova Frente Popular – uma coalizão esquerdista formada também pela França Insubmissa – conquistou a maioria do parlamento francês. Com 182 cadeiras, não conseguiram formar governo, mas o crescimento não deixa de ser uma vitória.
Sete anos antes, em 2011, o movimento Occupy Wall Street transformou Nova York no epicentro do debate sobre o neoliberalismo. Os manifestantes pediam a redução da desigualdade econômica e social e, sobretudo, o fim da influência do mercado financeiro na condução política dos Estados Unidos. Com o slogan “we are the 99%” (“nós somos os 99%”, em tradução livre), a mobilização conquistou avanços em políticas públicas americanas, mas também impulsionou candidaturas de políticos socialistas, como as do senador Bernie Sander, de Vermont, e da deputada Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York.
Também em 2011, os Indignados acabaram com o bipartidarismo da Espanha e obrigaram o tradicional Partido Socialista, de centro-esquerda, a formar coalizão com o Podemos, de esquerda, levando o cientista político Pablo Iglesias ao cargo de segundo vice-presidente.
Todos esses protestos têm elementos comuns. Em primeiro lugar, possuem discursos carregados de simbologia cujo objetivo é coletivizar interesses. E essa estrutura discursiva divide a sociedade entre nós e eles. Os oprimidos e seus opressores. Os manifestantes queriam, acima de tudo, alterar o status quo. Por esse motivo, os principais jornais os classificaram como populistas, embora não tivessem lideranças personalistas claras. E a imprensa não estava errada.
O movimento contra a jornada laboral de seis dias de trabalho por um de descanso é populista também. Marcada para a próxima sexta-feira (15), uma manifestação exigirá mudanças na legislação trabalhista para que trabalhadores tenham direito ao ócio. O protesto, liderado pelo vereador carioca Rick Azevedo (PSOL/RJ) e pela organização Vida Além do Trabalho (VAT), dominou as redes sociais digitais nesta última semana. Políticos e influenciadores fizeram publicações em que classificam a normativa como “desumana”. Nestes textos, é comum que os autores exponham privilégios de uma elite econômica e política. No TikTok, por exemplo, vídeos que mostram quais deputados não assinaram a Proposta de Emenda Parlamentar (PEC) são acompanhados de áudio que diz “ei, Michael, eles não ligam pra gente” e, em sequência, a música They Don’t Care About Us, de Michael Jackson. “All I wanna say is that they don’t really care about us”. Essa elite – eles – , dizem os críticos, martiriza a classe trabalhadora enquanto goza de benefícios. O fim da escala 6X1 é, portanto, carregado de discurso populista, assim como os Coletes Amarelos, o Occupy Wall Street e Os Indignados.
O populismo não é necessariamente algo negativo. O escritor uruguaio Eduardo Galeano afirmou que o exercício de “patriotismo” por nações dominadas é classificado negativamente como populista. O termo é utilizado com frequência por, sobretudo, veículos de imprensa, que constantemente o acompanham de adjetivos descabidos. São comuns frases como “o populismo econômico do presidente” que têm como objetivo descredibilizar ações anti status quo. No entanto, para Maria Esperanza Casullo, o populismo é uma leitura social que polariza povo e elite. Esse gênero discursivo, para Thomás Zicman de Barros e Miguel Lago (2022), caso tenha teor progressista, “talvez seja a única forma de democratizar sociedades profunda e crescentemente desiguais de maneira pacífica e participativa”.
Há moralismo ao classificar algo como populista. Muitas vezes, expressões do populismo, são tratadas como cânceres do regime democrático. Porém, em consonância com Barros e Lago, Chantal Mouffe e Ernesto Laclau (2015), entendem que negar os conflitos sociais é antipolítico e, por consequência, autoritário. A sociedade é, por natureza, polarizada, e, para eles, o populismo progressista pode ser, inclusive, construtor de uma verdadeira democracia liberal. Reconhecer os antagonismos é saudável.
Em contrapartida ao populismo de direita, a filósofa Nancy Fraser defende a construção de um populismo de esquerda que entenda o povo como categoria de pessoas marginalizadas. A unidade “povo”, portanto, seria um amálgama de trabalhadores, negros, indígenas, mulheres e pessoas LGBTQIA+.
Com o retorno de Trump à Casa Branca e a vitória do centrão fisiológico nas eleições municipais brasileiras de 2024, a esquerda está em crise. Não representa mais as classes pobres. Para o filósofo Vladimir Safatle, em seu Alfabeto de colisões, a esquerda está morta. Aproveitar o movimento contra a escala 6X1, através de forte discurso populista, é a oportunidade do progressismo realizar ação contra-hegemônica capaz de fortalecer o campo, como aconteceu nos casos citados.
Além disso, é a chance da esquerda recuperar marcos linguísticos que, segundo o linguista George Lakoff (2008), a extrema direita sequestrou. A defesa da liberdade, da família e da vida são pautas tradicionais da esquerda. O fim da escala 6X1 é lutar para que as famílias possam se reunir e compartilhar momentos de lazer, para que as vidas dos trabalhadores seja prazerosa de ser vivida – sem medo de pedir o direito ao ócio. Por fim, liberdade não é ser explorado por uma empresa de aplicativos fantasmagórica ou escrever mensagens de ódio nas redes sociais. Liberdade é poder trabalhar, sim, mas sem ser explorado pelos patrões.
A esquerda tem em suas mãos a oportunidade de conseguir construir hegemonia e frear o avanço do bolsonarismo. Basta saber se, como em tantas outras vezes, não vai perdê-la.
COLETES AMARELOS: O QUE É O PROTESTO NA FRANÇA, QUE REUNIU 280 MIL PESSOAS CONTRA ALTA DO DIESEL. BBC News Brasil, São Paulo, 18 de nov. de 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46249017>. Acesso em 12 de nov. de 2024.
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