Isadora Camello
Memórias, entrevistas e paisagens de uma Paris que vive mudanças. Essa é a base para o livro Sempre Paris: crônica de uma cidade, seus escritores e artistas, escrito pela jornalista, tradutora e escritora carioca, Rosa Freire D’Aguiar. A obra concorre à final da 66º Edição do Prêmio Jabuti na categoria crônica. No dia 19 de novembro, haverá a cerimônia de premiação.
No livro, Rosa traz registros do contexto sociocultural de Paris na época em que trabalhou lá como correspondente internacional, nas décadas de 1970 e 80. A publicação ainda conta com 21 entrevistas com diversos intelectuais, escritores e políticos. Entre as figuras entrevistadas, encontram-se nomes como Roland Barthes, Julio Cortázar, Eugène Ionesco, Ernesto Sabato, Françoise Giroud, Michel Serres e Norma Bengell.
Rosa iniciou sua trajetória profissional no jornalismo e morou em Paris nos anos 70 e 80, onde atuou como correspondente internacional das revistas Manchete e IstoÉ. Ao voltar para o Brasil dedicou-se à tradução de livros para francês, espanhol e italiano e seu trabalho na editora Paz e Terra. Foi laureada por diversas de suas traduções, como a de A elegância do ouriço, de Muriel Barbery, que venceu um Prêmio Jabuti em 2009. Também conseguiu o Prêmio Literário Biblioteca Nacional 2019 por Bússola, de Mathias Enard.
Em entrevista ao Caderno Cultural Expressões, Rosa Freire D’Aguiar contou sua trajetória no jornalismo à tradução, além de explicar como nasceu Sempre Paris: crônica de uma cidade, seus escritores e artistas.
CADERNO EXPRESSÕES – Como foram seus primeiros anos em Paris e qual foi o impacto cultural da cidade na sua vida?
Cheguei em Paris aos vinte e poucos anos e, de fato, foi um presente que recebi. Eu me lembro de quando vi, por exemplo, a Catedral de Notre Dame. Tinha lido Vitor Hugo, que fala muito da Notre Dame nos Miseráveis. Mas uma coisa é você ler na literatura, outra coisa é ver de frente. E quando cheguei, ainda meados dos [anos] 70, Paris estava muito suja. Os monumentos estavam com muita fuligem, muito pretos. Eu já achava [os monumentos] bonitos sujos. Depois, quando limparam, achei mais bonitos ainda. Mas a Notre Dame era cinza escura, com umas manchas bem negras. Era muito curioso vê-la, porque eu sabia que era de pedra clara. E, de repente, você olha aquela parede meio escura. Em Paris, estavam começando a limpeza por meio de um projeto muito bonito do Ministro da Cultura que tinha sido do [governo de] De Gaulle, o André Malraux, que também é escritor. Claro que demorou 20 a 30 anos, demorou muito. Mas, pouco a pouco, foram limpando os edifícios mais icônicos de Paris. Foi uma maravilha.
Agora, a coisa cultural de Paris é inevitável. Paris é uma das grandes capitais culturais do mundo. Tudo, de certa forma, acontecia lá. Aconteceu em Paris, aí era sucesso garantido. Depois, Nova Iorque, que já era uma cidade imensa, foi tomando a frente para certos assuntos. Por exemplo, em artes plásticas. Mas Paris ainda tinha aquela coisa de você brilhar. Tudo quanto era espetáculos e novidades queria passar por lá. Esse lado cultural me impregnou para sempre. E, hoje em dia, é claro que está dividido. Por exemplo, até falo rapidamente disso no livro, Paris não é mais o que era para as artes plásticas, não tenho a menor dúvida. Tenho certeza que perdeu muito pé para Nova Iorque e China. Xangai hoje em dia é uma grande capital cultural. Mas naquela época não era.
CADERNO EXPRESSÕES – Sua experiência na tradução rendeu diversos prêmios e reconhecimento. Como foi a transição da carreira de jornalista para tradutora?
Eu era jornalista no Brasil quando fui para Paris. Quando voltei, já no final dos anos 80, o meu marido ocupou um cargo de alto relevo em Brasília, de ministro. Fiquei um pouco receosa de trabalhar em jornal porque eu poderia eventualmente jantar com o presidente da república ou outro ministro. Era uma coisa um pouco dúbia. Então, pensei nisso e resolvi largar o jornalismo.
Comecei a trabalhar como conselheira editorial de uma editora, que na época era bem grande, chamada Paz e Terra, em São Paulo. Éramos um conselho de três, quatro pessoas. Então, fiz muita coisa lá.
Eu tinha um livrinho que comprei em Paris anos antes, de umas cartas do Côte de Gobineau, que tinha sido embaixador da França no Brasil em 1860, na época da Guerra do Paraguai. Eu tinha lido esse livro na França anos antes, nem pensava em fazer nada com ele, senão ler. Mas aí achei curioso. “O que a gente vai publicar sobre o Brasil?”. Lembrei desse livrinho e disse: “olha, tenho um livro que comprei na França há muitos anos”. “Você não quer traduzir?”. Eu estava meio à toa e disse “quero”. Aí, fiz a primeira [tradução].
CADERNO EXPRESSÕES – Quais os principais desafios na hora de traduzir obras de autores de diferentes estilos e nacionalidades?
Você traduz textos e contextos. Então, o contexto francês, eu conhecia muito bem. Conhecia os nomes da literatura. E a França, de certa forma, venera muito seus grandes escritores do passado. Os do século XIX, Balzac, Stendhal, Flaubert, essa gente toda. O fato de eu ter morado muitos anos na França, é [relevante] pela coisa da linguagem popular, de gíria. Na época não tinha Google, não tinha nem internet. Então, os dicionários com os quais eu trabalhava tinham algumas gírias, mas não eram um grande repertório delas.
Falo que tem sempre um pacto que a gente faz. Um pacto meio mudo, às vezes. Você faz uma espécie de um pacto silencioso, com o autor, dizendo: “olha, vou fazer tudo que posso para trazer o que você disse na sua língua, com todas as nuances, subtextos, subentendidos e trocadilhos para a minha língua”. É esse o trabalho do tradutor.
Peguei autores espanhois, de língua castelhana, de língua espanhola, de vários lugares. Muitos da Espanha, o país que eu mais conhecia,, mas peguei também da Argentina, Uruguai, Cuba e Peru. Uma dificuldade foi quando traduzi o Leonardo Padura, que é cubano, e eu nunca tinha traduzido um cubano. Aliás, ele foi o único cubano que traduzi. Ainda bem que ele estava vivo, porque consegui falar com ele. Tinha muitas gírias, porque eram livros policiais, aqueles primeiros que chegaram no Brasil pelas traduções que fiz nos anos 90. Era um detetive, um inspetor, e tinha gíria de policial, de ladrão, de bandido. E tem até gíria cubana, que não era a mesma que tinha na Espanha. Aí foi difícil. Mas, por sorte, depois de algum tempo, consegui que ele recebesse meu e-mail, e ele foi muito simpático. Disse: “com o maior prazer, me manda tudo que vou te explicando”.
CADERNO EXPRESSÕES – Seu livro, indicado ao Jabuti, traz muitas memórias e entrevistas de seu período como correspondente internacional. Como foi o processo de desenvolver a obra?
Encontrei essas entrevistas numa caixa em Paris. Basicamente, mesmo lá, fiz uma seleção. Foi na pandemia. Eu estava em Paris, meio quieta em casa, porque estava um confinamento muito restrito na França. Entre um trabalho e outro, comecei a ler aquelas entrevistas e vi que algumas eram muito boas ainda. Algumas tinham sobrevivido ao tempo. Minha ideia era publicar só as que fiz na França. Então, comecei pelas entrevistas. Era tudo escrito, batido à máquina. Teve o processo de digitação, mas não funcionava. Quando você tentava digitalizar textos escritos em papel carbono, digitalizava muito mal.
Fui lembrando de coisas, episódios, viagens, encontros, entrevistas. E, na verdade, foi assim que nasceu o livro. Uma parte com as entrevistas, consideradas melhores, ao meu ver, e as que sobreviveram a esse tempo, desde que elas foram feitas. Também porque, curiosamente, algumas pessoas que entrevistei, ganharam muito mais visibilidade depois que morreram. Assim nasceu o livro.
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