Crochê, tricô e água benta

Crônica por Isadora Camello

Ilustração por Doutarina.

A pandemia já se encaminhava para o fim, o lockdown praticamente não existia, tudo havia voltado ao antigo normal, como se convencionou chamar nos telejornais, quando fui visitar meus avós. A casa estava do mesmo jeito de sempre, os vasos de plantas falsas no mesmo lugar, as fotos das netas quando crianças nos mesmos porta-retratos e a vasilha com balas de menta na mesinha de centro.  Tudo continuava igual, a não ser por uma sacola de papel com agulhas de tricô e linhas no canto da sala.

Perguntei à minha avó se ela havia começado a fazer tricô ou crochê, não fazia ideia da diferença. Ela me disse que crochetava há muito e deu uma leve resmungada ao notar meu desconhecimento sobre esse fato. Em minha defesa, devo dizer que ela nunca foi uma avó típica, do tipo que prepara almoços, bolos, costura ou demonstra muito afeto.  Eu, em resposta, retribuía com o mesmo comportamento. Seu jeito de nos cuidar  era oferecer um gole de água benta — benzida via novena do Divino Pai Eterno, às 10h, na TV — assim que nos sentávamos no sofá.  

Depois do meu gole tomado, ela retomou à minha pergunta e despertou para uma falação sem fim. “Na minha época de escola, as meninas tinham aulas de bordado, de etiqueta, crochê, tricô e tudo que uma mulher deveria saber fazer”. Ainda relembrou as aulas onde treinavam a postura, andando com livros sobre a cabeça. Talvez se eu tivesse essas aulas, não sofresse com escoliose. 

Olhei para as linhas coloridas mais um pouco e, tentando interromper o ciclo de histórias, tão antigas que até minha mãe duvidaria da veracidade, pedi quase em tom de apelo: Me ensina! Pela sua reação, creio que era tudo que ela estava esperando. Começamos pelo crochê – a técnica de uma só agulha pareceu a escolha ideal. Correntinha, ponto baixo, baixíssimo, alto, meio ponto alto e uma faixa totalmente irregular se formou. 

A didática de sala de aula com certeza se perdeu após anos longe do ofício  de professora. O passo a passo que minha avó repetia sem parar me confundia tanto que desistimos. Passamos ao café com bolo, mas não sem antes ela me fazer prometer que levaria uma agulha e um novelo de lã para continuar os trabalhos em casa. Me comprometi a orgulhá-la como a neta prendada que sou, como ela mesma diz, já que as outras têm  pavor da cozinha e repulsa a trabalhos manuais.

Após alguns milhares de vídeos no YouTube, entendi como funcionava a mecânica dos pontos. Três horas completamente dedicadas ao crochê renderam o que poderia servir como uma mantinha para Barbies, se ainda brincasse com elas. Logo mais saiu uma touca minúscula, que talvez nem uma boneca pudesse usar. Tirei foto da criação, mandei para minha vó que, no mesmo instante, respondeu com elogios exagerados. 

Foi o incentivo que faltava. Nas semanas seguintes, comprei agulhas de diferentes numerações e lãs coloridas. Com uma receita para seguir e me mantendo fiel à promessa, em dois meses eu tinha um cardigan de quadradinhos. Um processo que minha avó acompanhou por meio de fotos e relatos por WhatsApp. Nossa troca de mensagens aumentou exponencialmente e os pequenos afetos se tornaram rotina da nossa relação. 

Quando o casaco, enfim, foi finalizado, levei-o para ela ver pessoalmente e tive certeza que ela não esperava tanta dedicação minha. Bom, o máximo que já fiz em crochê foram meias e polainas, ela me disse, após me oferecer um gole de água benta. Creio que foi um elogio. 


Isadora Camello

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina e admiradora do jornalismo cultural. Editora-assistente do Caderno Cultural Expressões.

Doutarina

Estudante de Animação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e ilustradora freelancer.

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