“Priscilla”, um terror psicológico travestido de biopic

Longa de Sofia Coppola coloca Priscilla Beaulieu no foco da história de seu relacionamento com Elvis Presley

Jade Luckner

Ao untuoso som de “Baby I Love You” dos Ramones, a mais nova obra de Sofia Coppola, Priscilla, abre com uma sequência que mostra detalhes da personagem principal, em sua rotina vaidosa e delicada. Com cortes fechados que nos aproximam e dimensionam um pouco do que estamos a presenciar pelas próximas quase duas horas seguintes, vemos Priscilla levantando da cama, com foco nos seus pés pintados em esmalte vermelho, praticamente desaparecendo ao pisar em um tapete felpudo. Temos um vislumbre de sua mão firme aplicar o grosso delineado em sua pálpebra, passar laquê no penteado, aplicar cílios postiços e batom e se equilibrar em cima de um pequeno salto de bico fino, que a leva para os cômodos do palacete em Graceland, sua prisão e fortaleza para mais um dia de solidão e opulência.

Lançado em 2023, o longa aborda intimamente a história de Priscilla Beaulieu enquanto vivia um relacionamento com Elvis Presley de seus 14 aos 27 anos. O roteiro e direção foram produzidos com o aval total de Priscilla, que já declarou enxergar Elvis e a história dos dois com carinho, e esse olhar é perceptível pelas decisões criativas da diretora e roteirista, Sofia. A cineasta fez questão de retratá-lo com uma sensibilidade irritante, visto que ele era um abusador e um chato de marca maior. O roteiro do longa foi baseado no livro Elvis e Eu, que conta um período de vida específico da Priscilla, e este foi definitivamente um ponto negativo para a história contada na obra de Sofia. Apesar de conseguir, eloquentemente, retratar a solidão e reclusão de Priscilla dentro de si enquanto se relacionava com Elvis, o espectador termina o filme sabendo muito pouco sobre sua personalidade, gostos e opiniões.

Apesar disso, o filme nos ambienta sobre a situação vivida por Priscilla com alguns recursos narrativos e estéticos interessantes. Um dos destaques está nas cenas que mostram Priscilla sozinha na mansão de Elvis, em takes amplos que evidenciam sua solitude diante daquele luxuoso universo. A jovem é retratada vagando pela gigantesca casa, sem hobbies, sem interesses, e nada além de muito tesão, que raramente é consumado por seu namorado e depois marido, que parece enxergá-la com uma pureza misógina que flutua pela narrativa sutilmente. A personalidade de Priscilla está sempre à luz do artista, que escolhe o tipo do cabelo, maquiagem e roupas usadas por ela, a moldando ao seu sabor.

(Mídia: Reprodução/American Zoetrope)

O figurino, inclusive, complementa a narrativa e estabelece o tom e a identidade dos personagens. As roupas são um retrato da moda de diferentes décadas, e também um resquício da (falta de) personalidade da Priscilla. Depois de anos de imposição de Elvis, percebemos o senso estético dela finalmente se alterando, as roupas mudam e o penteado — assinatura clássica que ajudou a estabelecê-la como it girl dos anos 70 —, se transforma em um cabelo natural liso, longo e solto, quase rebelde, no momento em que Priscilla se liberta da fortaleza daquele relacionamento, 10 anos depois do início de tudo.

Em Priscilla, as longas cenas, diálogos truncados e situações cíclicas escalonam para uma obscuridade opressiva que se mistura às lindas cores e uma fotografia precisa e prazerosa. A sensação de desespero e solidão acompanha toda a narrativa e esse parece ser o ponto principal de conexão com o espectador. Talvez a sutileza aqui seja tão grandiosa que torne difícil a tarefa de compreender as linhas finas que separam a dor do prazer na história. A juventude de Priscilla, seus desejos e anseios oprimidos pelo homem que amava. A sensação sufocante, nauseante, opressiva, combinada à delicadeza estética de cada década retratada, belas cores nos figurinos e decoração da fortaleza de Elvis, ajudaram a estabelecer a ambiência de uma fantasia aterrorizante.

(Mídia: Reprodução/American Zoetrope)

Sofia também nos ajuda a adentrar no universo de Priscilla ao escolher uma trilha sonora acurada com a estética sonora da época retratada e repleta de grandes nomes como Ramones, Brenda Lee e Porches. A proibição do uso de canções originais de Elvis foi uma força motriz para a criatividade tomar conta  e estabelecer ainda mais Beaulieu como protagonista da própria história. Cerca de 20 músicas de diferentes períodos e gêneros foram escolhidas para compor a trilha, que segundo Sofia, remetem à juventude feminina e acompanham as sensações retratadas em cena.

A narrativa é constituída também por um inegável humor movido pelo absurdo, especialmente na atuação de Elordi como Elvis. Cenas que destrincham a personalidade errática e esdrúxula dele remetem ao pesadelo em que Priscilla estava metida, presa e praticamente enterrada. As incontáveis negativas aos desejos sexuais de sua esposa, a obsessão pelos livros de filosofia e espiritualidade, sua ode a uma seita cristã e a posterior cena da queima de livros mostraram o ridículo homem que era Elvis Presley.

(Mídia: Reprodução/American Zoetrope)

Como um conto de fadas, Priscilla se sai bem. É polido, contido e sutil. Como um filme que se propõe a mostrar a vida, anseios e personalidade de Priscilla Beaulieu para além de Elvis Presley, falha. Se o véu do carinho que ainda cobre as lembranças de Priscilla fosse derrubado completamente por Sofia, talvez o retrato da história fosse mais fidedigno e sua persona fosse desvendada plenamente por nós.

Depois de presenciar uma década de sufocamento, finalmente somos arrebatados pelo rompimento da prisão de Priscilla na porção final da obra. Enquanto observamos a pieguíssima cena da jovem dirigindo para longe de Graceland ao som de ‘I Will Always Love You’, chorosamente cantada por Dolly Parton, fica óbvio que sua resignação foi sempre o amor que sentia por Elvis. Amor este que foi penosamente substituído pelo sentimento de carinho e cuidado que Priscilla descobriu em si própria.

(Mídia: Reprodução/American Zoetrope)

Depois de tudo isso, fica claro que Sofia Coppola segue sendo a melhor da nossa geração para tratar da temática feminina com todos os pesares e beleza que circundam esse universo complexo, doloroso e bonito que é ser mulher.

Cailee Spaeny (Priscilla) e Sofia Coppola no set de filmagens. (Foto: Sofia Coppola/W Magazine)

Jade Luckner

Graduanda em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina, entusiasta do jornalismo cultural.

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