O que poderia dar errado? 

Conto por Maria Clara Lima

Desenho em que uma garota morena, apreensiva, está sendo abraçada por uma loira. No fundo, a porta de um banheiro revela pegadas de sangue.
Ilustração por Alana Pongan dos Santos.

Sexta-feira, 13 de outubro de 2023. A lua cheia brilha no céu.

Supersticiosa que sou, preferia ficar sozinha a noite toda, quiçá todo o final de semana, me protegendo de qualquer coisa que pudesse acontecer. Meio paranoica? Talvez, mas minha avó Rita sempre dizia: “melhor prevenir do que remediar”. Como uma boa e obediente neta, costumava seguir seu conselho à risca, normalmente era a melhor opção. Vovó fala que é sensitiva, que sua linhagem vê coisas que os outros não percebem e por isso dei ouvidos para ela a vida toda. Até hoje.

Dois dias atrás, o grupo de alunos no qual consegui me inserir com mais facilidade no curso de Jornalismo tinha marcado de sair. Sessão de cinema na noite de sexta, esse seria o plano. Relutei, mas insistiram tanto que fiquei comovida. Não quis me dar ao luxo de recusar sair com eles uma segunda vez, pois desde que o semestre começou, no final de agosto, os três foram os únicos de quem consegui me aproximar minimamente e praticamente só nos víamos durante as aulas.

Francisco e Luiza eram um casal, juntos há quase dois anos. Ele entrou no curso algum tempo antes da namorada, mas fazíamos algumas matérias juntos. Quem não está com a grade curricular bagunçada que atire a primeira pedra. Anna Júlia virou melhor amiga de Luiza assim que começaram a estudar Jornalismo e parecem ter uma conexão de vidas passadas. Eu fui acolhida por eles sem entender muito o porquê, não vejo tantas coisas em comum entre nós, faço o tipo observadora e os acho mais protagonistas. Apenas aceitei de bom grado quando passaram a me chamar para fazer trabalhos em conjunto.

Torcendo para estreitar nossos laços com esse rolê, me arrumei para encontrá-los. Caminhei sozinha pela rua, mais correndo do que realmente andando, para chegar logo ao Centro de Eventos da UFSC. A noite escura me pedia para voltar para casa e ler um bom romance, mantendo todas as luzes acesas, de preferência. Porém, lá estava eu, em pé no meio de vários outros alunos, enquanto procurava por meus amigos.

— Bu! — alguém chegou por trás, tocando minha cintura e me fazendo pular com um grito. Pelas risadas, reconheci a voz de Luiza.

— Oi Camila! Calma, sou eu.

— Luiza do céu, você quase me mata do coração!

Ela me puxou para um abraço e aproveito essa oportunidade para esconder meu rosto vermelho de vergonha. Espero minha respiração voltar ao normal antes de perguntar onde está o resto do grupo.

— Chico subiu para comprar nossos ingressos, Anna Júlia deve estar na praça de alimentação. Vamos lá?

Concordo com a cabeça. Maldita hora em que aceitei maratonar filmes de terror. Odeio esse gênero, não vejo sentido em um entretenimento que te deixa apreensivo. A sessão ainda nem começou e eu já estou assustada! Deveria ter me atentado a outra ótima frase de minha avó: se você sabe que vai te fazer mal, passe longe sem pestanejar. Na verdade, ela estava falando sobre comer brigadeiro quente e tomar sorvete mesmo quando se está resfriada, mas acho que a dica caberia para essa situação também.

Entramos no Centro de Eventos e fomos em direção à lanchonete procurar nossa amiga. Luiza para, aponta para o banheiro e diz que precisa entrar, pois está apurada. Peguei sua bolsa e a esperei do lado de fora.

Checo o horário no celular. 23:23. “Horas iguais são um aviso do universo, Cami”. Era o que a vovó dizia. Para mim, esse aviso só me lembra que deveria estar na cama, pelos meus cálculos, só vamos acabar de ver os filmes mais de três da madrugada. “Nada de bom nunca acontece depois das duas da manhã”. Mais um lema de dona Rita invade minha mente.

A porta do banheiro abre e, por um segundo, acho que Luiza está saindo. Entretanto, percebo que é apenas uma menina muito parecida com ela. Está usando uma calça jeans justa, um casaco de couro preto e a mesma camiseta branca com a frase “gato preto não dá azar, azar é não ter a vida de um gato”. Coincidência estranha… Quais as chances de duas garotas — ambas loiras de franjinha, percebo agora — estarem usando roupas iguais no mesmo local?

— Que foi? —  a menina pergunta, me fazendo perceber que eu a devia estar encarando. 

— Tem alguma coisa em mim, Cami? — me assusto quando ela se refere a mim por meu apelido.

— Nã… Não. — respondo insegura. “Pode ser alguém a quem fui apresentada e só não lembro o nome agora”, penso.

— Você tá estranha. Ainda é por causa do susto que te dei?

— Que susto? Quando isso?

— Ué! Três minutos atrás, quando te achei lá fora. — a estranha age como se fosse Luiza. Não são a mesma pessoa, tenho certeza absoluta. O nariz é diferente, as maçãs do rosto e o formato do queixo também. 

— Pode me dar minha bolsa.

Não me movo, ainda encaro essa mulher. Ela pede novamente a bolsa e entrego apenas porque começa a parecer irritada, com seus olhos muito fixos em mim e os punhos cerrados. Não sei com quem estou lidando, então não quero provocar a impostora. Meu coração volta a bater mais forte, como depois do susto que levei.

Tentando despistá-la, vai que ela é igual um animal silvestre e consegue farejar o medo, sugiro andarmos atrás de Anna Júlia. Vejo nisso uma oportunidade de ajuda, Anna vai perceber que esta ao meu lado não é nossa amiga e procurar a verdadeira comigo.

Meu mundo cai quando Anna acena em nossa direção. “Será que eu estou ficando maluca?”. Tento me acalmar, ela pode ter visto apenas a mim. Só que a falsa Luiza falou cheia de intimidade abraçando Anna, que, por sua vez, não notou nada de estranho. 

Nos sentamos juntas para esperar Francisco. As duas conversam animadas e a impostora continua a me encarar. Seus olhos não parecem ter vida, estão apenas vidrados em algo e parecem buscar o fundo da minha alma. Enquanto as meninas conversavam sobre os filmes que iríamos assistir, puxo meu telefone e abro o Instagram de Luiza. A verdadeira. Ao ver as fotos, tive certeza de que não era a mesma pessoa. Os corpos até são parecidos, porém os traços da face não me enganam. Será que as duas, ou melhor, as três, estavam tentando me pregar uma peça?

Francisco chega e nos dá oi. “Será que ele também está participando da pegadinha?” 

— Comprei nossos ingressos. Já podemos entrar na sala, querem ir?

Nos levantamos, caminhamos em direção ao andar de cima e eu observo atentamente os três interagindo, tentando arrumar uma brecha para desmascará-los. Luiza deu as mãos para Chico, virou para trás e deu uma piscadinha em minha direção.

Novamente, me senti sem chão quando Francisco beijou a moça. Literalmente fiquei de queixo caído. Luiza, fã número um da monogamia, jamais permitiria que seu namorado desse um selinho em outra mulher nem que a vida dela dependesse disso, quem dirá para uma pegadinha. Nem mesmo Chico seria capaz de traí-la. 

— O que foi? Até parece que nunca viu nosso casal favorito se beijando. — questiona  Anna Júlia.

— Ah, nem liga, Anna. A Camila tá bem estranha hoje. — respondeu a falsa Luiza, lançando um sorriso frígido para mim. Ou verdadeira Luiza, nem sei mais. — Mas está tudo bem, não está, Cami? — sinto um arrepio percorrer minha espinha quando me chama pelo apelido, usando um tom ameaçador. Talvez eu esteja enlouquecendo.

Entramos na sala e meus batimentos continuam acelerados. Não faço ideia do que está acontecendo. Como posso ser a única a notar que há algo de errado com Luiza? Afinal, se a Luiza que entrou no banheiro é a mesma que saiu, porque seu rosto parece tão diferente?

As luzes se apagam e o telão acende, dando início ao filme Sexta-feira 13. Logo nas primeiras cenas, noto que nem todos têm sua atenção voltada ao clássico. Luiza está sorrindo para mim. Não para de me encarar durante o longa metragem, que assisto sem prestar atenção. Só consigo pensar em correr para algum lugar e ligar para minha avó em busca de conforto. Talvez ela entendesse a situação melhor do que eu…

Na esperança de ficar longe dessa mulher estranha por pelo menos um minuto, decidi ir ao banheiro. O banheiro! Foi lá onde tudo começou, quem sabe eu consiga achar algum sentido para essa situação toda.

Estou prestes a levantar quando sinto uma mão fechar em torno do meu braço.

— Aonde você vai? — Luiza sussurra com uma voz cortante.

— Preciso ir… é… comprar uma água. Estou com a garganta seca. — decido não dizer que quero ir ao banheiro, vai que ela tenta me impedir. E nem é totalmente mentira, minha garganta está seca, tamanha minha ansiedade.

— Hm. Não demore.

Ela está segurando meu braço com força e fico ainda mais nervosa. Com a respiração descompassada, tento me desvencilhar e puxo meu braço bruscamente quando me levanto, e sinto sua unha arranhando minha pele. Corro para fora do auditório e me encosto na parede. Paro por um segundo a fim de respirar fundo e impedir as lágrimas que tentam escapar.

Volto a correr até o banheiro no andar inferior, mas sou impedida de chegar lá. A porta está fechada, com uma fita amarela e preta colada. Ao redor, várias pessoas se tumultuam a fim de ver o que está acontecendo e um policial tenta impedí-las. Me aproximo tremendo, sem mais impedir o choro.

— O que aconteceu? — pergunto a ninguém em específico.

— Uma funcionária da limpeza entrou no banheiro para fazer a manutenção e achou uma menina morta dentro da cabine. 

— O quê?! Quem era?

— Ainda não identificaram, ela não tinha nenhum pertence, nem mesmo as roupas. O rosto estava desfigurado, mas é loira. Quer dizer, era.


Maria Clara Lima

Estudante de Jornalismo da UFSC, apaixonada por livros e por escrita. Natural de Manaus, se considera manezinha de alma.

Alana Pongan dos Santos

Estudante de Animação na UFSC. Gosta de produzir ilustrações com temas fantasiosos, destacando a beleza do corpo humano e usando cores vibrantes. Sonha em poder fazer animações de grande escala sobre seus personagens, com uma narrativa focada em seus conflitos psicológicos mais profundos.

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