Júlia Götz
Com 17 anos de idade, é difícil decidir o que fazer para o resto da vida. Mas, assim como grande parte dos jovens, Adja Balbino precisou tomar essa decisão importante de maneira precipitada. Ao se inscrever para o vestibular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), focada em prestar a prova para o curso de Psicologia, mudou de ideia no meio do caminho. Correu os olhos atentamente pela lista de cursos disponíveis e saltou os olhos pelas palavras “Letras – Português-Espanhol”. Sem pestanejar, se inscreveu.
Quando chegou em casa mais tarde naquele dia e entregou os documentos de inscrição para sua mãe, assustou a matriarca. “Você precisa ter uma profissão. Eu e o seu pai não vamos conseguir te alimentar para sempre”, brigou. Quarenta e seis anos depois, Adja se sustenta bem como doutora e professora da Pós-Graduação em Linguística e em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Sua mãe não sabia que, anos depois, Adja teria seu trabalho reconhecido ao vencer o 3º Prêmio Propesq – Mulheres na Ciência 2023 da UFSC. Dentre várias pesquisadoras, Adja foi a escolhida pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (Propesq), na Categoria Plena – Ciências Humanas, para receber o prêmio.
Adja conta que, ao escrever o memorial necessário para se inscrever no prêmio, teve poucas esperanças de ganhar e quase desistiu. Ela estava se recuperando de um acidente e passou por algumas cirurgias na perna, por isso tinha dores fortes enquanto elaborava o texto. “Quando você fala de ciência, ninguém pensa em Letras, você pensa em Física, Química, Engenharia… Por isso cogitei: ‘Porque eu vou morrer de dor escrevendo, se nem vou ganhar?’”, conta.
Depois de dois dias pensando em abandonar a inscrição, ela mudou de ideia. “Pensei que tudo bem, eu não vou ganhar. Mas vou marcar presença como pesquisadora de Letras e mulher negra”, relata.
Para Adja, preta e bisneta de pessoas que foram escravizadas, receber o prêmio foi essencial na manutenção da sua autoestima. “Sou mulher, esposa e mãe, mas também sou pesquisadora e trabalhei muito durante todos esses anos: tenho pesquisas que são referências importantes na área”, diz com orgulho. “Aos 63 anos, caminho para a aposentadoria com a cabeça erguida”, conclui Adja.
Ela relembra, aos risos, o que disse para sua mãe, quando se inscreveu para o curso de graduação: “Se eu não fizer Letras – Espanhol, não vou fazer nada”, brigou. Quando perguntada sobre o porquê dessa paixão pela língua, ela diz, com um sorriso morno: “Eu acho lindo. E só isso me basta”.
Carioca raiz e com um sotaque morno característico, ela conta sobre sua trajetória com confiança. Voltou grande parte de suas pesquisas à Lexicografia, que é o estudo científico e analítico da elaboração de dicionários.
Adja também trabalhou como tradutora de dublagem de novelas mexicanas na década de noventa e se especializou em língua espanhola na Espanha, onde também realizou seu doutorado e pós-doutorado.
Trajetória acadêmica
Quando trabalhou como professora na Universidade Estadual de Londrina (UEL), Adja percebeu que não existiam muitas pesquisas lexicográficas no Brasil. Motivada pelos estudos do alemão Reinhold Otto Werner, iniciou seus projetos na área, junto a esse professor. A pesquisa contou com a participação de diversos estudiosos e consistiu na elaboração de um “Dicionário de Falsos Amigos Português-Español”, publicado em 2014. Seu mentor, Werner, veio a falecer antes de ver o resultado do trabalho.
Em 2009, começou a trabalhar como professora adjunta na pós-graduação de Linguística da UFSC. Desde então, Adja realizou três pós-doutorados internacionais, duas vezes na Espanha e uma na Alemanha.
Em 2019, ela produziu uma novela gráfica intitulada: ”Un amor de novela: libro para universitarios brasileños estudiantes de español”. Nessa obra, ela conta a história de um jovem carioca de periferia que consegue uma bolsa para estudar Letras na Espanha. Lá, ele acaba se apaixonando por uma colega e constroi uma vida no país.
O livro é utilizado nas aulas de graduação em Letras-Espanhol ministradas por Adja, em conjunto com um dicionário, também produzido por ela. Foi aí que a pesquisadora percebeu um detalhe: entre seus estudantes de Pós-graduação há um número considerado de Surdos e pareciam não compreender totalmente o significado de algumas palavras e expressões em espanhol estudadas em sala.
A partir daí, começou a pensar em uma maneira de contemplar todos os seus alunos: criou um dicionário de Português-Espanhol-Libras. Para a criação desse material online, ela precisou reinventar a maneira de significar uma palavra.
“Dois elementos são fundamentais: a imagem e a Libras, porque o nosso discurso, nossas expressões idiomáticas, podem ser um completo mistério para estudantes surdos”, explica Adja. Assim, se fez necessário disponibilizar, além da palavra escrita e traduções diretas em Libras, imagens e vídeos que demonstrem mais a fundo certas palavras e expressões.
Adja exemplifica: a palavra “castillo”, em tradução literal, significa castelo. Mas, por se tratar de um castelo espanhol, com características específicas, diferentes dos castelos que vemos no Brasil, o dicionário conta com um vídeo mostrando características de “castillos” espanhois.
A produção desse dicionário começou em 2022 e segue até hoje, contando com o trabalho de diversos estudantes de Adja. Até então, não existia, no mercado editorial do Brasil, nenhum dicionário de espanhol que tivesse estudantes surdos como foco.
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