Sob seu dorso curvado e suas mãos apoiadas na cintura, a cifra de algum desespero sustentava-lhe o gestual. A sua frente, para além da cerca, seus cavalos estavam entregues ao tapete verde de gramíneas e ao banho delicado do sol a pino. Moscas zuniam em zigue-zague ao redor de cada um deles, crispando-lhes as orelhas e alguns músculos isolados, e os raios de sol faziam brilhar trechos de suas pelagens. Essa beleza, que era cansaço, assumia uma aparência quase angelical.
No tempo da infância, sabe-se lá quantas vezes correra para deitar no gramado, junto deles. Ao chegar lá, punha-se a gastar seu ócio encarando-os, extasiado, pois era menino e sentia a vida com doce força. Com o passar do tempo, porém, sua inocência veio a calejar: cada vez mais foi percebendo a dureza e a secura do solo interiorano, a instabilidade inflexível das estações, a improdutividade que às vezes tomava o plantio. A vela da infância, assim, foi deixada no quarto abandonado queimando sozinha, até apagar. E ele, enfim, cresceu homem.
Não queria a beleza que via agora no pasto. Desde que espichara, ela nunca mais foi objeto de seu desejo. Notava-a, e, com a expressão grave que aquela terra lhe havia dado, murmurava ofensas aos animais. Havia ido até ali para montar em um deles e partir numa cavalgada, sem rumo e sem vitória. Fazer isso era costume seu quando não mais conseguia conter a força da náusea que crescia em seu íntimo. Ser um homem naquela localidade era árduo, mas ser humano era mais ainda: há muito enterrara a si próprio sob o terreno do silêncio em prol do que deveria ser, e isso estava lhe custando caro. Mas era o que os homens tinham de fazer – ele pensava -, o que seu bisavô fizera, depois seu avô e, mais recentemente, seu pai. Ele estava apenas seguindo o que lhe fora ensinado.
Diante da cerca que separava a estrada da pastagem, seu incômodo crescia. E cresceu até o ponto em que ele se viu entrando pela portinhola da divisa, com a cela e o chicote em mãos. No começo, foi caminhando lentamente até os cavalos, mas quando atingiu certa distância, tornou a apressar o passo e, de um instante a outro, lançou-se em disparo. Como um animal em fúria, correu até à manada e tentou dispersá-la, com pontapés e chicotadas. Aquela monotonia, aquela doçura de um estranho cansaço — elas não poderiam continuar. Os cavalos, por reflexo, se ergueram em susto, relinchando. O terror tomou o lugar da graça. O zunido das moscas cessou. O sol continuava ali, afagando tudo, mas a impressão era de que havia morrido. O silêncio se transformou: agora ele tinha a feiura e a agressividade do momento.
Seus olhos coléricos miravam os olhos assustados de cada cavalo, tal que quisessem que eles os desafiassem. Naquela tensão, tudo parecia se suspender por um instante, desde os barulhos até os odores do mato. O homem respirava com peso e ardor — estava cansado, tragicamente cansado. Mas não como estiveram os cavalos antes de ele entrar pela portinhola. Seu cansaço era uma prisão em que ele mesmo se pusera, uma masmorra herdada e bem cuidada no tempo. Já o cansaço da manada exprimia a grandeza do descanso, a cessação de todo afã e, acima de tudo, a entrega à vontade da vida.
Justamente o que a vida não queria, ele fizera: no seu passado, não havia lhe sido ensinado que a vida de dentro tem o único caminho de verter para fora. Caso isso não viesse a ocorrer, ela eventualmente apodreceria. Essa angústia que sentia, assim, era um pântano estendido em seu íntimo, em que jaziam, em estado de decomposição, as suas tão únicas verdades. Porque algo o fizera sentir mais de perto o cheiro fétido do próprio interior, ele então revidava.
Em frente ao bando, escolheu um dos cavalos. Chegou-lhe perto e jogou a cela de couro pesado em suas costas. Em seguida, murmurou algo em seu ouvido, tentando subir. Sobre o grande animal, cutucou-lhe com as esporas e chicoteou o ar para que andasse. Mas nada funcionou. Agarrou então sua crina na pura truculência. O animal relinchou de espanto e começou a se remexer a expulsá-lo de si. Ressentido com essa malcriação, o homem apertou ainda mais a crina, fazendo com que a montaria tornasse a saltar de dor. Do agarrar de mãos e pular de pernas, uma das forças por fim se sobressaiu, e o homem caiu da cela.
A queda o atordoou um pouco, deixando-o espichado de exaustão na grama. Perder para um cavalo era uma derrota incontornável. Em nenhum momento da história de sua família, ele julgava terem os homens sido derrubados pela própria montaria. Isso, caso ocorresse, seria o estopim para perder o respeito dos parentes, a imponência dentro do lar e muitos outros sustentáculos que concediam solo firme. Mas ele perdeu. Sem que pudesse se negar, crispou os olhos e, contorcendo-se, chorou. Não havia sobrado mais nada do homem que construíra. O choro extravasou feio, como se os músculos da face não estivessem acostumados com aquele tipo de contração. Ficou assim, frente a frente consigo, durante um tempo, até que, tendo secado toda a tristeza e não restado o que chorar, ergueu-se um pouco. Olhou novamente para os cavalos, de cabeça baixa. Não queria que eles o vissem chorando. O dono de um cavalo não poderia chorar; o dono de um cavalo era, além de tudo, dono do mundo e de si. E o mundo não admitia lágrimas de dono caindo sobre seu solo.
Para sua surpresa, a manada, enquanto ele chorava, havia voltado novamente a descansar sob o sol. Como se alguma força secreta tivesse clareado sua percepção, sentiu os mesmos raios quentes baterem em sua pele e as mesmas moscas o rodearem com seus zuns-zuns. Algum entendimento havia nisso, ele intuía. Algum descanso também. Um assombro ensimesmado substituiu a cólera de antes, e ele então, quase que magnetizado, andou até um dos cavalos e recostou a cabeça em seu dorso.
O cavalo era forte, e doce que arrebatava. “Você é um santo”, murmurou o homem, e havia alguma coisa de derrota e êxtase em sua fala. A doçura em si daquele animal o abismava, mas não somente ela: os músculos potentes e largos, que eventualmente crispavam com o pouso das moscas; os olhos marejados e inocentemente escuros, como amoras maduras; tudo isso lhe punha na boca, em contraste com a imensa força suspensa dele, o gosto de algum mistério que ainda não podia decifrar. Ele não podia vencer o cavalo, e soubera muito bem disso. A vitória não era a conquista concretizada de uma cavalgada: a vitória não existia. Porque algo no rosto do cavalo lhe fazia abaixar a cabeça e chorar o que nunca chorou, não havia vitória. Aquele animal era a revelação cabal do que ele não queria admitir: que era alguém, tremendamente alguém, de carne, ossos e vãos. Vãos cheios de gavetas. Lesões que se passasse o dedo sangrariam, aos montes e sem misericórdia. Inocência, pronta para abrir em botão. O cavalo era ele. O cavalo tinha de ser ele.
De alguma forma, entregou-se para o novo mistério, ainda que não o entendesse: seu olhar, vencido, perdeu-se no descanso dos cavalos. Suas mãos agora repousavam com diferente cansaço na grama e queriam fundir-se a ela num toque sensibilíssimo. Tal como naqueles dias antigos de sua vida, o homem pôs-se a desmanchar na aprazibilidade do momento. Sem dureza, sem angústia.
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