Roger Johnson, o espião da tríplice fronteira

Conto por Kalil de Oliveira

Ilustração por Lucía Alday.

Eram 3h14min da manhã quando meu celular, com seu toque intrusivo e perturbador, me despertou com uma chamada entrante. O barulho emitido pelo telefone, que estava apoiado em uma pilha de roupas a oito passos da minha cama, era uma sequência de notas de algum instrumento caribenho (sei disso porque uma vez vi um guatemalteco tocando algo com um timbre semelhante na rua Conselheiro Mafra, em Florianópolis). Era um som limpo, alegre, mas, ao mesmo tempo, por conta da fonte e do momento, brutal. Uma disruptura do estado natural das coisas que tinha como objetivo principal atormentar a mente humana. De cara, me recusei a aceitar que aquilo estava acontecendo. Recusei a abrir meus olhos, que, mesmo que eu quisesse, não teria sido fácil pelo peso do sono.  Deixei que tocasse por alguns segundos, até que a tentação de descobrir o que me esperava do outro lado da linha telefônica falasse mais alto. Me deixei guiar pelo pouco de luz azul que vinha dos postes da rua e entrava pela minha janela permanentemente aberta e atendi a ligação.

– Você não vai acreditar no que acaba de me acontecer! – disse uma voz ausente, quase fantasmagórica. Era um tom grave, pesado. Ele falava em um espanhol americanizado, confundindo palavras com uma risada característica. Levei uns bons segundos para entender que quem falava era Nathaniel Kaufman, um suíço-norte-americano que foi em minha palestra sobre o sequenciamento genético de hipopótamos do Extremo-Oeste de Santa Catarina. Após o evento, que fazia parte da programação do XXII Congresso Brasileiro-Argentino de Espécies Binacionais, ele, que se interessava por animais latino-americanos, me procurou para fazer uma crítica à exposição de minha pesquisa. Eu havia me esquecido, explicou ele, de levar em consideração o materialismo histórico dialético em minha pesquisa. Por isso, argumentou, meus resultados, ainda que com certa conclusão correta, eram imprecisos. Era impossível sequenciar o DNA de um mamífero sem levar em conta a estrutura hierárquica e antagônica dos bichos que acompanhou todo o processo de evolução. Me chamou para tomar um café no Centro de Buenos Aires, perto do hotel no qual os organizadores do evento tinham me hospedado, para me explicar o ponto de vista dele. Era um lugar singelo. Embora fosse justo ao lado de um importante teatro, era um estabelecimento desconhecido pelos turistas. A conversa, mesmo eu tendo achado uma grande bobagem, foi interessantíssima e viramos amigos ao longo dessas duas semanas de atividades acadêmicas que passei na Argentina. Ele, ao contrário de mim, passaria um ano no país. Tinha sido enviado pela Universidade de Minnesota para um intercâmbio na Faculdade de Ciências Agrárias, me disse, e se matriculou em uma disciplina optativa: “Marxismo Socioambiental na América Latina”.

Por conta do horário – e da dificuldade em entender as frases-gargalhadas em outro idioma – sugeri que ele parasse a história por aí e me encontrasse na manhã seguinte, em um restaurante da avenida Corrientes, no bairro Onze, onde poderíamos comer tranquilamente e ele poderia me contar sua história. 

“Na sexta-feira”, começou ele, “um colega português, Paulo de Alencar, um grande militante da organização maoísta do Arquipélago de Açores que passava uma temporada na América Latina, me convidou para fazermos uma viagem de supetão, no mesmo dia, para as cataratas de Iguaçu. Disse a ele que não sabia nada a respeito, só sabia que eram cachoeiras famosas, e ele me prometeu que seria lindo. Pensei ‘por que não? O que mais tenho para fazer no fim de semana na Capital?’. Embarcamos seis horas mais tarde, às 19h30, em um ônibus que partiu do Terminal Rodoviário de Retiro – um lugar que equilibra a maravilha do futuro com a crueldade do presente (e talvez do passado).

As luzes de leitura eram muito fracas, iluminavam apenas o pó que passava por debaixo de seus raios, e, como já era noite, o ônibus era um local muito escuro. Era úmido e as poltronas tinham cheiro de mofo. Tal qual descrevo, sei que parece uma viagem desagradável. Na realidade, não era assim que me sentia. Pelo contrário, a decadência do transporte, a incerteza da rota e a iminência de um deslumbramento no final do trajeto me davam a sensação de independência. É como se aquilo, estar rumo ao desconhecido a muitos quilômetros de minha casa,  significava que finalmente eu consegui me libertar de mim mesmo. Digo, que me tornei quem desejava ser por estar no meio do nada, onde, para qualquer lugar que eu olhava, só se via um vasto campo. 

Ambos estávamos lendo nossos guias de viagem e buscando informações na internet, porque, embora os livros fossem bem completos, eram datados da década passada. Muitas coisas haviam mudado. Em uma das pesquisas, Paulo encontrou um artigo de um jornal canadense que dizia: ‘Al Yutlaq utiliza município paraguaio para lavagem de dinheiro’. Essa milícia revolucionária, que operava através de táticas controversas (e muitas vezes cruéis), havia atacado o Palácio Amir Karim, sede do governo de Al-Yaman Al Jadid, uma república oriental que havia sido tomada por uma série de empresários belgas no século XX para explorar petróleo e água. Aos poucos, povoaram o local com mais europeus. Tinham o desejo de formar uma sociedade nova, livre das corrupções ocidentais e da barbárie muçulmana. Tomaram o governo com ajuda da presidente do Conselho Europeu, Iracema, que possuía interesses econômicos e geopolíticos na região. Segundo os chamados terroristas pela imprensa internacional, Al Jadid mantém cerca de 20 mil pessoas da etnia Awad em trabalho escravo para extrair dentes de serpentes fossilizados das terras de Masqad Al-Jadid. Comprometido com a luta (e com a piada), Paulo compartilhou com um amigo cubano, através de um SMS, o link da reportagem e a frase ‘indo para uma viagem de negócios’. Como a lua já estava em um ângulo de 95 graus no pampa argentino, pouco podia se ver pela janela. Decidiu que era hora, bloqueou o telefone e fechamos a cortina para podermos dormir. Passaríamos o dia seguinte todo em cachoeiras e queríamos descansar para aproveitarmos ao máximo.

O sono foi difícil. Quanto mais chegávamos perto da fronteira paraguaia, pior eram as estradas. Os buracos, somados à má qualidade do ônibus, eram condicionantes do desconforto. Era por volta das 6h da manhã quando o ônibus parou na Rodoviária de San Javier. Era uma edificação que poderia ser chamada de brutalista se quiséssemos elogiar mas, na verdade, era um bloco pequeno acinzentado, sem ornamentos. Não se via mais nada além de campos de soja ao redor e uma bifurcação que, provavelmente, deveria levar ao município em si. Não desembarcamos. Ficamos por lá ao longo de 20 minutos, mas entrou um único passageiro. Era um homem de 1,86 metro que fazia questão de ser notado por todos. Ele usava uma camiseta branca, precisamente enfiada dentro de uma bermuda cargo verde escura que cobria seus joelhos. Pouco via-se da perna, logo após um tênis cinza de corrida, vinham meias que cobriam metade das canelas. Tinha um boné preto, curvo, cobrindo o que parecia ser uma careca, e um óculos aviador. Tinha uma barba extremamente bem feita, como se nunca tivesse passado pela puberdade. Disse oi para quase todos os passageiros. Simpático, parecia aguardar a resposta de cada um. Foi caminhando lentamente e se sentou ao nosso lado, onde tinha duas poltronas livres. Em uma, a do lado da janela, deixou sua mochila. 

– Oi – disse ele com um tom educado. Logo percebi que ele era do meu país – tudo bem?

‘Sim’, respondi, ‘tudo bem’. Ele começou a fazer várias perguntas, pensei que para puxar assunto. Nós, cordialmente, respondemos todas. No começo, eram fáticas. O que achávamos da Argentina, das paisagens, da música. Ele adorava a carne, nos contou. Achamos tudo normal. Era um homem, provavelmente solitário, buscando conhecer pessoas. 

– Sou de Langley, Virgínia – disse  – e vocês, de Saint Paul e São Miguel? 

Nesse momento, as coisas começaram a ficar estranhas. Como ele poderia imaginar as nossas cidades exatas? Ainda que fosse óbvio, pelo sotaque, nunca contamos nossas nacionalidades. Em seguida, começou a fazer perguntas muito precisas. Questionamentos que já continham respostas. Como, por exemplo: ‘Como estava o tempo no aeroporto de Bogotá às 9h56min, onde você fez conexão?’. 

Enfim, decidimos, sem combinar, calar e seguir nossa viagem em silêncio. 

– Me chamo Roger, a propósito. Roger Johnson – Disse. Assentimos com sorrisos nervosos. 

Duas horas mais tarde descemos no Paraguai. Fazia muito calor. Mesmo com o ar condicionado, já nos sentíamos agoniados dentro do ônibus. Na rua, parecia que tínhamos desembarcado no inferno. O mormaço era tanto que pingávamos de suor como se tivéssemos corrido de um bicho que nos amedrontava. Íamos em direção à parada de táxi. Ele nos alcançou na metade do caminho e perguntou se poderia ir com a gente, afinal, contou ele, não tinha o que fazer no Paraguai e queria aproveitar o dia que ficaria ali com pessoas que soubessem exatamente o que estavam fazendo. Era muito estranho, pensamos ambos, uma pessoa viajar para outro país sem absolutamente nenhum plano. ‘Não’, respondi educadamente, ‘não me leve a mal, mas não te conheço’. Ele pareceu ter entendido e ficou passos para trás. Entramos no táxi. Era um Ford Ka velho, daqueles que parecia uma barata. A cor desbotada dava um charme, como se fosse uma relíquia. Algo a ser guardado. ‘Para o Salto Monday’, pedi ao motorista. O carro estava por arrancar –  o motor fazia um som bastante único e, paradoxalmente, comum –  quando Roger abruptamente abriu a porta. ‘O que você está fazendo?!’, gritei irritado, em inglês.

– Vou com vocês – contestou, com naturalidade.

– Não – respondi – Não vai. Fuck off, bro – lhe respondi. Até aquele momento eu tinha me esforçado ao máximo para permanecer em espanhol. Pensava, primeiramente, que era uma forma de incluir Paulo, mas era um desejo de me transformar em outra pessoa. Assumir uma outra personalidade que me convinha melhor.

– Nathaniel, eu vou com vocês – ele disse –  don’t fuck with the CIA. 

Ficamos calados e com medo. Ele nos acompanhou ao longo de todo o passeio, nos ffotografando diversas vezes. No fim, não tínhamos muito o que fazer. Fomos agindo com naturalidade e até nos divertimos bastante com ele”.

– E então? – perguntei.

– Pegamos o ônibus no fim de tarde, às 18h. Ele, obviamente, nos acompanhou, se despediu exatamente às 20h03, já no lado argentino, e desceu em San Javier. Nós seguimos até Buenos Aires, chegamos aqui hoje de manhã. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *