Licença

Miniconto por Eduardo Di Bernardi

Ilustração por Bruno Medeiros.

Chegou à porta do boteco, pediu licença. Pediu licença porque queria ir ao banheiro, mas também porque não tinha banheiro — e por não ter um, por não ter nada, achava que só podia ter o direito à vida pedindo licença. O dono do bar, que já tinha se acostumado com sua presença constante ali, ainda que se incomodasse era um homem que conhecia a dureza da vida: ia até a porta do estabelecimento e a conduzia até o banheiro, nos fundos. Conduzia-a durante o percurso, no entanto, olhando a clientela com olhos de martirizado.

O dono do boteco veio a ela em passo apressado, e a levou com mais pressa ainda, como de costume. Ao chegar ao banheiro, ela o agradeceu, sem olhá-lo nos olhos: pedindo licença. O dono não disse nada, anuindo com a cabeça e fechando a porta em seguida, no tempo curto de um respiro.

Ela não se sentou na privada. Havia chegado a um nível de miséria em que queria — de todo coração — somente aquilo que os outros lhe permitissem.

Ela não se sentou na privada — a privada era daqueles que, por terem chuveiro, sentavam-se em privadas sem remorso, sem pensar que o mundo inteiro sentaria nelas e eles não as sujariam. Mas ela tinha remorso; ela pensava que sujaria a privada sentando-se. Ela pensava que sujaria o chão do boteco ao entrar nele com seus pés descalços. Ela pensava que sujaria a clientela ao chegar perto dela. Ela pensava que sujaria o mundo estando nele — e por isso pedia licença.

Enfim defecou. De pé. Apertou o botão da descarga e saiu, de cabeça baixa. Não lavou a mão, mas não por falta de higiene: o sabonete não podia acabar por sua causa. Por sua causa, nada no mundo poderia acabar. Em razão disso, dormia num filete de papelão e comia as sobras de estabelecimentos locais sem um espasmo de revolta. Talvez tivera raiva no começo, quando sua dignidade ainda não havia sido derruída por noites de fome e frio. Mas agora tudo o que tinha era uma condescendência radical e sólida, que muito poderia ser confundida com gentileza extrema.

Às vezes pegava jornais que o dono do boteco lhe deixava ao pé da porta. Sabia ler e se sentia curiosa pelas notícias diárias. O Brasil a interessava, o Brasil era uma terra sem igual, pensava. “Deus abençoe o brasileiro!”, ela dizia a si mesma quando recebia um pote de arroz frio do boteco. Defendia o país com uma teimosia cristã, ainda que o país lhe afugentasse, quase todos os dias, da fachada de estabelecimentos. Em geral, não se prendia muito nisso, pois lembrava-se da sua raiva há muito soterrada e sentia vergonha.

Considerava-se a ferida do mundo — por isso pedia licença.

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