Sombras do Palácio

Os fantasmas do Museu Histórico de Santa Catarina que vivem no imaginário popular

Ana Muniz

Algumas pessoas ainda lembram de quando o fantástico circulava pela Ilha da Magia, conhecida pelas suas bruxas, sereias e lobisomens. Eli Ramos, rendeira manezinha de 70 anos, recorda das reuniões no engenho de farinha de seu pai, nas quais eram comuns as lendas e relatos sobrenaturais. Diz ter visto três vultos na Ponta das Almas quando era adolescente. “Depois que botaram luz elétrica, a gente não viu mais nada. Hoje é difícil ver assombrações porque elas não queriam luz, e é tudo iluminado”.

Mas existem pontos no Centro Histórico da capital que resistem às luzes do contemporâneo e, assim, atraem o sobrenatural. Não à toa, em seu coração repousa uma velha figueira de mais de 250 anos. Quem vai à Praça XV de Novembro com frequência, provavelmente já viu turistas ou crianças circulando em torno da árvore, sob a penumbra de seus extensos galhos sustentados por hastes metálicas. Sejam uma, duas ou sete voltas (cada um tem sua versão da história), ao completar o ritual, o praticante supostamente terá mais chances de casar. Mas, cuidado: há quem diga que rodar no sentido antihorário dá em separação.

A Figueira Centenária, no centro da Praça XV de Novembro, costumava ser um dos pontos de encontro mais populares da cidade. (Foto: Ana Muniz).

O que nem todo turista ou morador da ilha vê é o que acontece nas sombras do Palácio Cruz e Sousa, antes chamado de Palácio Rosado. O sobrado de dois andares com paredes cor de rosa foi “Casa de Governo” e, desde 1986, é a sede do Museu Histórico de Santa Catarina (MHSC). Muitas pessoas viveram e passaram por aquele espaço — e, embora não seja mais uma residência, muitas outras ainda vivem por lá.

Veronice Nogueira tem 54 anos, 28 deles como funcionária do Museu. É mediadora, recebe e guia visitantes. Tão logo começou a trabalhar no Palácio, Veronice ficou sabendo das lendas urbanas sobre fantasmas que assombram a construção rosada. No início, duvidou, chamou de “fantasias”. Agora, fala com segurança: “realmente há algo sobrenatural. Acredite ou não, mas há”.

Desde 1984, o Palácio Cruz e Sousa foi tombado como patrimônio histórico de Santa Catarina. (Foto: Ana Muniz).

Paredes contam histórias

Veronice e Simone Coelho, também mediadora do Museu, estavam sentadas nos bancos do corredor em frente à sala de música, no primeiro andar. O Palácio Cruz e Sousa deveria estar vazio naquele momento. As portas dos cômodos estavam fechadas, era período de restauração. As duas conversavam e descansavam até serem interrompidas. A porta da sala de música se abriu, mas não tinha vento. Expôs uma pequena fresta e fechou. Ao abrir pela terceira vez, Veronice disse: “parece que tem alguém nos espiando”. Mal acabou de falar e a porta bateu com força. Assustadas, as duas mediadoras se entreolharam. Foram parar na administração, onde encontraram outras funcionárias. “Gente, vocês não sabem o que aconteceu”, começou Veronice.

Experiências desse tipo não são incomuns entre quem trabalha ou trabalhou no Museu. Alguns escutam barulhos. Os salões espaçosos nos quais tudo ecoa escondem poucos ruídos. Com o devido silêncio, já conseguiram ouvir muita coisa: passos, movimentos de portas e janelas, vozes e conversas indistintas, o velho piano da sala da música sendo tocado… Um dos sons mais conhecidos são as badaladas de um relógio carrilhão que não funciona mais. Segundo os funcionários, ele tocava pontualmente às três da tarde. Quando a equipe passou a esperar pelo badalar, ninguém mais ouviu.

Eliatar Anselmo, policial militar de 55 anos, trabalhou no Palácio entre 2018 e 2021. Em julho de 2019, pela manhã, iniciou seu turno antes do edifício abrir para visitas. Além dele, apenas outro vigilante estava no Museu. Enquanto o colega buscava café no andar de cima, Eliatar permaneceu no cômodo de funcionários abaixo do terraço e começou a escutar passos. Uma voz feminina resmungava. Os sapatos de salto alto fizeram barulho no piso de madeira pelo salão do térreo, onde ficam as exposições temporárias, e pararam próximo ao banheiro. Imaginando que poderia ser uma amiga, outra funcionária, abriu a porta e gritou em direção ao cômodo, vazio naquele momento: “estás brava? Aconteceu alguma coisa?”.

O salão estava fechado. E escuro. Exibia uma exposição com diversos manequins usando vestidos de época. “Tá querendo me assustar?”, perguntou Eliatar. Por fim, alertou a quem ele pensava ser a colega que entraria no banheiro. Atravessou a porta, mas não encontrou ninguém. Voltou à salinha de funcionários e saiu para a parte externa do Palácio. De lá, perguntou gritando ao vigilante onde estava aquela amiga. Porém, ela ainda não havia chegado. “Continuo achando que foi coisa do meu subconsciente”, afirma Eliatar.

Não são apenas os funcionários: visitantes de diversos lugares do mundo também encontram o sobrenatural dentro do sobrado rosado. Às vezes, são pessoas que nunca viram espíritos e descobrem uma sensibilidade aguçada exatamente ali. Algumas enxergam vultos as seguindo, mulheres em vestidos de época, homens sentados em locais proibidos. Mas há quem passe por experiências mais intensas.

Numa data em que o sol não quis dar as caras, Veronice guiava uma família pelo Museu. De acordo com a mediadora, os fantasmas aparecem mais em dias como aquele. “É sempre assim, chuvoso e nublado”. Na visita, apresentou uma caixa de som antiga que ainda funcionava. Encantada com o dispositivo, a família pediu para ativá-lo. Assim que a música começou a ecoar, a mãe petrificou. Em seguida, chorou incontrolavelmente. Todos se desesperaram. Mas precisavam esperar o fim da música — a caixa de som não podia ser desligada. Quando o dispositivo silenciou, a mãe voltou a si. Olhava em torno, confusa. Segundo ela, fora transportada para outro lugar, outro plano. Foi a sua primeira experiência daquele tipo. “Ela não era espírita, kardecista, umbandista, nada”, diz Veronice, “foi algo que a gente não sabe explicar”.

Atualmente, o andar superior do MHSC tem acesso limitado para visitantes por estar sob trabalho de restauração. (Foto: Ana Muniz).

Entre os funcionários, há uma regra: a partir das 19h, todos devem sair do Palácio. Afinal, se sua aparência já é “sugestiva”, como diz Márcia Escorteganha, restauradora do Museu, quando há sol, quem dirá à noite. Quando o Museu fecha, as luzes das áreas de visitação são apagadas. Nesse caso, as únicas regiões que escapam do escuro são as atingidas pela luz que atravessa as claraboias. Se assombrações realmente gostam do escuro, faz sentido que as do sobrado prefiram ficar pelo andar de cima, com suas sombras e móveis antigos.

Diferente de muitos da equipe, Maria Sueli de Jesus não se assustava com o andar superior. “Tinha medo dos vivos, desses daí não”, afirma. Ela foi zeladora durante uma década, até se aposentar em 2023, aos 69 anos. Durante esse período, precisou trabalhar à noite algumas vezes. Quando ocorriam eventos noturnos, ela fazia a faxina. Se as comemorações passavam das 22h, último horário do ônibus que Sueli pegava para casa, precisava passar a noite no sobrado com o vigia noturno. 

Em uma dessas ocasiões, a festa não parou quando os convidados foram embora. Já era madrugada e Sueli esperava na guarita do Palácio. Estava sozinha, o vigia havia saído para tomar um café, quando percebeu que da sala de jantar, logo acima da guarita, vinham barulhos: brindes, conversas, louças batendo, pessoas dançando. Os fantasmas faziam sua própria comemoração. Quando o vigia voltou, os sons continuavam. Duraram cerca de 20 minutos. Com medo, nenhum dos dois conferiu a sala de jantar.

Há quem quebre o toque de recolher dos funcionários às 19h de vez em quando, mas alguém precisa passar a noite lá todo dia. Élcio Finger trabalhou como vigia no Museu por 18 anos, sendo os oito últimos no plantão noturno, das 19h às 7h da manhã. Durante a noite, com portas e janelas trancadas e mais ninguém no sobrado rosa, qualquer barulho é ainda mais misterioso. Passos, portas e janelas batendo, “eu ouvia tudo isso nitidamente”, afirma, “ficava um ar meio Uma Noite no Museu”. Além dos ruídos, via flashes, vultos tão rápidos que não dava nem para saber se eram gente. 

Poucos reconhecem rostos nas figuras que enxergam. Porém, coincidências entre um relato e outro constroem personagens populares para o Palácio. Uma das mais famosas é Joaquina Ananias Xavier da Luz, mãe do ex-governador Hercílio Luz, falecida em 1884. Os íntimos a chamam de Dona Joaquina. Visitantes dizem avistar uma mulher vestida com trajes de época e, ao ver o quadro dela na sala de jantar, garantem: “foi essa mulher que vi”. Tanto Simone quanto Veronice testemunharam situações como essa. 

O retrato da Dona Joaquina, de Louis-Auguste Moreaux, está em restauração atualmente. (Foto: Ana Muniz).

A fantasma é tão reconhecida que, às vezes, vira brincadeira entre a equipe do Museu. “Vocês não vão dar tchau para a Joaquina?”. Márcia, a restauradora, questionou, em tom de piada, algumas colegas que passavam pela sala de música enquanto trabalhava certo dia. Se objetos e paredes de fato guardam histórias, ninguém melhor que a responsável pela preservação do espaço para entendê-las.

Seus colegas a conhecem por trabalhar com muita concentração e imersividade. Em um certo dia, restaurava o mural do salão azul, no topo de um andaime. De repente, o equipamento tremeu. Seus utensílios, pincéis, tintas, começam a cair no chão. Aos gritos, pediu para que aquilo parasse. “Por favor, eu estou arrumando, deixando o lugar bonito!”.  O andaime estabilizou e as coisas pararam de cair. Márcia, então, retomou a pintura.

A restauradora ralhava com um fantasma menos popular nas lendas urbanas que  Dona Joaquina: o ex-governador Jorge Lacerda. Márcia nunca o viu nem ouviu, mas sente sua presença. O paranaense morreu em 1958, em São José dos Pinhais, no Paraná, interrompendo seu mandato no governo catarinense. Apesar da morte em seu estado natal, Lacerda passa sua pós-morte na Ilha da Magia (em corpo e espírito). Foi enterrado no Cemitério São Francisco de Assis, no bairro Itacorubi, e o esquife em que seu caixão foi colocado está no salão azul do Palácio Rosado. O cômodo recebe outros dois nomes: salão nobre ou salão fúnebre. Este último devido aos velórios de figuras políticas e religiosas que ocorreram lá — entre elas, o ex-governador Lacerda.  

Segundo a restauradora, cada fantasma tem um cômodo favorito. Joaquina prefere ficar na sala de música e na de jantar. Jorge Lacerda costuma ficar no salão nobre. Outro ex-governador, Ivo Silveira, já apareceu para ela no quarto com a claraboia lanternin. Há ainda uma noiva que circula pelo andar de cima. E nem a administração, bem iluminada e moderna, escapou. Por um tempo, Márcia sentiu a presença de um vulto de criança perto de uma de suas colegas. Logo depois, a mulher engravidou.

Após tantas histórias, os funcionários começam a especular sobre o porquê desses espíritos viverem no Museu. Alguns, como Lacerda e Joaquina, figuras relevantes para a memória e a política catarinenses, parecem ter relações mais explícitas com o espaço. Outros, como a noiva, a criança e pessoas não identificadas vestidas com roupas de época, são mais enigmáticos. “Acredito serem as pessoas que viveram aqui”, opina Veronice, “não desgarram daqui e ficam circulando. Pensam que ainda estão vivos”. 

Por incrível que pareça, os fantasmas do Palácio não assustam o público — pelo contrário, atraem visitantes. De acordo com Simone, se a imprensa fala qualquer coisa sobre as assombrações, chegam mais pessoas. Inclusive, há alguns anos, foi uma reportagem de televisão sobre a noiva do andar de cima que despertou na mediadora a vontade de conhecer o acervo. Três semanas depois, começou a trabalhar lá. Hoje, quando, nas visitas, perguntam sobre as lendas, Simone já responde brincando: “vocês acham que se eu tivesse visto um fantasma eu ia estar aqui para contar a história?”. 

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