Ana Beatriz Quinto e Ana Muniz
Morreu na quinta-feira passada (16), há uma semana, o escritor, advogado e professor universitário catarinense Péricles Prade, aos 82 anos. Membro da Academia Catarinense de Letras, Péricles era formado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e foi vice-prefeito de Florianópolis em 1996.
Apesar de sua carreira voltar-se mais ao Direito, também teve grandes trabalhos na literatura: durante a carreira, escreveu mais de 70 trabalhos, dentre eles, estudos jurídicos e ensaios. Também publicou obras de ficção, como “Os Milagres do Cão Jerônimo”, “Alçapão para gigantes”, “Ao som do Realejo”, e “Relatos de um Corvo Sedutor”.
Suas contribuições acadêmicas e profissionais para Santa Catarina são imensuráveis. Durante sua trajetória, também desenvolveu trabalhos no setor cultural, e foi presidente do Conselho Estadual de Cultura (CEC), em meados dos anos 2000.
Como tributo ao legado literário de Péricles Prade, o Caderno Cultural Expressões conversou sobre o autor com Dennis Radünz, doutorando em Literatura na UFSC, escritor de obras de poesia e crônicas. É diretor-editor da Nave, editora que publicou dois livros sobre o trabalho de Péricles: “O erotismo como ascese – a poética do desejo em Péricles Prade” (2023), de Benedicto Luz e Silva e “Sobre a Casa de Máscaras de Péricles Prade” (2024), de Benedicto Luz e Silva, Fernando José Karl, Jayro Schmidt, Marcos Laffin e Ronald Augusto. Além disso, era amigo pessoal de Péricles.
EXPRESSÕES – Como você enxerga a contribuição de Péricles Prade na literatura?
DENNIS RADÜNZ – Eu resumo em uma palavra: poesia-pensamento. O que difere da poesia mais considerada pelo senso comum, que é a poesia como a expressão de um sentimento ou de um estado anímico, do eu, do sujeito subjetivado. O Péricles sempre se dedicou a uma poesia-pensamento no sentido de um texto pensado como arte, como filosofia, e claro que a principal contribuição dele, pelo menos no âmbito de Santa Catarina, é ter trazido uma série de referências culturais, sobretudo das leituras que ele tinha. A poesia-pensamento é uma vertente não muito comum na poesia brasileira e Péricles foi um dos maiores representantes. Se fala como uma poesia do fantástico, do insólito. Às vezes, erroneamente, chamam de surrealista. A poesia a que me refiro é também uma poesia citacional, ela abarcava outros autores e épocas a partir do texto. Ele também tem uma longa trajetória na literatura. Eu acredito que a contribuição dele, de um modo mais técnico, foi renovar o repertório. Ele trouxe para Santa Catarina um repertório de autores, de referências muito sofisticado, erudito. Ele é um poeta para poetas, é melhor apreciado por aqueles que já tem uma leitura da literatura universal. Ele nunca escondeu esse desejo de conversar com outros autores, poetas e contistas universais.
EXPRESSÕES – Em entrevista para a Editora da UFSC, Péricles demonstrou ter como inspiração Franz Kafka (que também foi um advogado) devido à inclusão de elementos do universo jurídico em sua escrita. De que modo esses elementos podem ser percebidos nas obras de Péricles?
DENNIS RADÜNZ – O Péricles foi um célebre jurista, sua atividade principal sempre foi na área do Direito. Nós podemos perceber isso na própria linguagem dos poemas e dos contos, em que você não tem, por exemplo, as frases na ordem direta. Há um rebuscamento da expressão, que tem relação, obviamente, com a oratória e o texto jurídico, por isso a referência dele ao Franz Kafka. Além disso, vamos pensar de um modo muito simples: o Direito é um código. É o ciframento de um pacto social. Ou seja, todo o Direito é baseado num código de leis e de jurisprudência, de interpretação da lei. Podemos pensar a poesia do Péricles também como um código, como uma decifração. Do que? De uma realidade ulterior, que não é a imediata, não é a cotidiana. Então, uma outra contribuição que ele traz na sua poesia é você poder lê-la em um primeiro plano, em uma superfície, no sentido imediato, mas também poder lê-la interpretando os símbolos que ela evoca. Teve também uma contribuição muito forte do esoterismo, do ocultismo, de várias várias linhagens. Em muitos sentidos a poesia do Péricles é enciclopédica. Se você rastrear as referências, irá se perder, porque não há como dominar tudo aquilo que ele evoca. É uma poesia erudita, nesse sentido. Tanto o Direito como o ocultismo, eles pedem uma decifração. Do mesmo modo, a poesia do Péricles também pede uma decifração. Por isso ela é inesgotável. Você pode de deter num único poema infinitamente. Poemas muito simples, que tem um sentido aparentemente imediato, mas que faz referência a uma outra realidade. O que também é muito lúdico. Quem conheceu o Péricles mais proximamente conheceu seu enorme senso de humor. Então, tanto você pode se aproximar dessa poesia como um código secreto a ser descoberto, como você pode se aproximar de jogos de linguagem, como sendo uma brincadeira mesmo, para o leitor, tudo isso ao mesmo tempo.
EXPRESSÕES – Pessoalmente, como foi sua relação com Péricles Prade?
DENNIS RADÜNZ – Bom, somos nascidos na mesma região. Péricles nasceu no Rio do Cedros, eu em Blumenau, o Lindolf Bell, um grande amigo dele e meu, nascido em Timbó. Como vocês sabem, quando Péricles nasceu, Rio dos Cedros pertencia a Timbó. Tanto é verdade que foi decretado luto oficial do município de Timbó e não de Rio dos Cedros, e a Biblioteca Pública Municipal de Timbó leva o nome dele: Biblioteca Municipal Professor Péricles Prade. Esses homens de outra geração, foram amigos do meu pai, que era jornalista em Blumenau. Então, literalmente eu os conheço desde que eu nasci. Tanto o Péricles quanto, principalmente, o Lindolf Bell, que morou muito mais tempo lá. Mas, na verdade, a partir dos anos 90, com a publicação do livro “Jaula Amorosa” de Péricles em 1995 e meu livro, “Exeus”, em 1996, nós nos aproximamos como escritores. E ele sempre acompanhou minha trajetória e me tornei bastante próximo a ele. Como amigo, obviamente, amigo de vida. Péricles foi muito importante na minha vida. Meu pai faleceu precocemente, então eu diria que, em alguns momentos da vida, o Péricles foi um segundo pai, pela amizade que ele tinha com meu pai. E ao mesmo tempo, interlocutor intelectual, no sentido em que eu fui editor de vários livros dele. Por exemplo, sou editor de um livro dele muito importante chamado “Bruxaria nos Desenhos de Franklin Cascaes” de 2008, ele era também um crítico de arte. E “Ao Som do Realejo”, como minha esposa está lembrando aqui. É tanta coisa, né? “Ao Som do Realejo” é um livro de contos de 2008. Eu escrevi o posfácio de um livro dele chamado “Ciranda Andaluz” de 2003. Escrevi a apresentação de um livro dele de 2013 chamado “Olho Gótico”. Então, entre os escritores, sempre há a amizade atravessada como uma troca intelectual. E eu acho que o fato da sua biblioteca de poesia pessoal, 800 livros dele estarem aqui comigo, que ele me deu há três anos… Ele já sabia do seu estado de saúde frágil e considerou que eu seria o “herdeiro” desse percurso dele como leitor. É belíssimo. A gente abre qualquer livro a esmo, vê os livros anotados, sublinhados, tudo aquilo que ele gostava, a frase que chamou atenção no Rainer Maria Rilke, no Novalis… É outro modo de conhecer o amigo. Vou abrindo o livro e vou descobrindo aquilo que interessou a ele em uma época da vida. Então, minha resposta é essa: foi um amigo de vida. O Péricles foi um amigo pessoal e tive essa possibilidade de colaborar com ele, tanto escrevendo prefácios e posfácios dos livros dele, como também sendo editor dos livros dele.
EXPRESSÕES – De que modo Santa Catarina pode reverberar e manter a obra do Péricles em evidência?
DENNIS RADÜNZ – A editora da UFSC publicou uma nova edição única de dois livros de contos muito importantes dele: “Alçapão para Gigantes” (1999) e “Os milagres do Cão Jerônimo” (1986). Nesse momento em que a UFSC relançou essa obra, Péricles foi “redescoberto”. Claro que entre os escritores e pessoas do meio intelectual, ele sempre foi reconhecidíssimo. É interessante porque é uma obra que alcança pelo insólito de sua linguagem, e também pelo humor. Existe muito humor na literatura do Péricles. E ela, curiosamente, alcançou gerações novas, adolescentes, na casa dos vinte anos, então isso é um começo. Há menos de um mês, o Péricles ganhou um reconhecimento pela Academia Catarinense de Letras, por toda a trajetória de sua obra. E quem o entregou foi o Miguel Angel Schmitt Rodriguez, que é o responsável pelo Museu Casa do poeta Lindolf Bell, em Timbó (SC). Era a casa do Bell em Timbó. Com a morte dele, em 1998, foi transformada em museu pela prefeitura, e lá estava todo o acervo do Lindolf Bell. E, já naquele momento, existia o desejo daquela Casa do Poeta em também divulgar a obra do Péricles pela amizade profunda que ele e Lindolf tiveram na juventude, exatamente lá em Timbó, que fica ao lado de Rio dos Cedros. Então, acho que, do ponto de vista institucional, vai haver esse cuidado. Eu próprio vou ser uma das pessoas que vai ajudar a fazer sempre uma curadoria. Tenho toda a obra completa dele comigo e abiblioteca pessoal de poesia dele comigo. E, claro, virão novas edições. Uma editora de São Paulo estava com a inteção de publicar a sua poesia completa, que vai começar a circular. E sua companheira, Patrícia Prade também tem o desejo de levar isso adiante. Mas eu sempre falava ao Péricles que, como ele é um autor muito inovador, muito inusitado, acho que a recepção da obra dele nem começou ainda. É aquele típico autor que vai ser redescoberto no futuro. Nós temos alguns casos disso no Brasil, Campos de Carvalho, Murilo Rubião… Certeza nunca temos, mas acredito que isso virá a acontecer com a obra dele.
Deixe um comentário