Do apagamento ao fortalecimento 

Manifestações culturais afrodescendentes em Florianópolis promovem a conexão de pessoas negras com suas raízes

Nan Honório e Sofia Leal

Orumimá Orumi maió
Orumimá oê abadó oraiê iê ô
Ai ai ai da Oxum
Oxum mirerê ô

Abadá a Oxum – Oxum Pandá

Em um sábado ensolarado, mulheres do bloco Cores de Aidê ensaiavam a dança e os batuques do samba reggae no Colégio de Aplicação na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis. O espaço era composto por mulheres de diversas idades e etnias, e o grupo cantava o Abadá a Oxum, música em homenagem à orixá que representa a sabedoria e o poder feminino. O ritmo preenchia o ambiente. “O samba reggae é um gênero musical muito politizado na sua essência, tanto por trazer a história do povo negro nas suas composições, quanto pela forma de fazer, de ser mesmo na rua”, conta Dandara Manoela dos Santos, cantora e uma das organizadoras do bloco.

Com cerca de 80 mulheres ativas no grupo, o bloco Cores de Aidê já teve mais de 500 mulheres presentes em sua história. Confira aqui parte do ensaio. (Foto: Sofia Leal)

Visto internacionalmente como um símbolo do Brasil, o samba surgiu no país no século XX. Descendente dos batuques africanos, o gênero musical acontecia originalmente nos espaços urbanos do Rio de Janeiro e desembarcou em Florianópolis na década de 1940. De acordo com a pesquisa “A Pedagogia das Escolas de Samba de Florianópolis: A construção da hegemonia cultural através da organização do carnaval”, de Cristiana de Azevedo Tramonte, defendida em 1996, no Mestrado em Educação da UFSC, “os marinheiros do Rio de Janeiro e do norte do país vieram servir na ilha”. Para reduzir a distância com a cidade natal, os cariocas traziam a cultura carnavalesca para Florianópolis, principalmente em bares na rua Major Costa, no centro. 

Na capital catarinense, o samba foi embranquecendo e a presença negra foi sendo apagada. Segundo Jaqueline Conceição da Silva, pesquisadora em Antropologia da UFSC, embora o samba seja historicamente reconhecido como parte da cultura da população negra, é comum que, em Florianópolis, o protagonismo seja deslocado para pessoas brancas. “O movimento histórico e a escolha das elites europeias coloniais daqui foi sempre esse apagamento. Então, o samba deixa de ser um produto criado numa comunidade negra no começo do século passado no Rio de Janeiro para virar um produto nacional, neutro, sem identidade, vendido, comercializado e consumido, essencialmente, por pessoas brancas”, explica a pesquisadora.

A busca por essa neutralização da cultura africana se dá por um processo de higienização, de acordo com o historiador Jaime José da Silva. Para ele, na capital catarinense, esse fenômeno se evidencia em diversos espaços, mas destaca o Mercado Público, que antigamente era dedicado às rodas de samba, rap e outras manifestações culturais. Por volta de 2009, quando o historiador pesquisava para seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre as festas de origem africana em Desterro, antigo nome da capital de Santa Catarina no século XIX, o Mercado passava por uma reforma. “Eles estavam querendo tirar os antigos bares, fazer novos bares e revender as lojas do mercado público para um outro público, para uma outra classe”.

Diante desse apagamento da cultura negra, hoje é possível reconhecer espaços de reivindicação e valorização da afrodescendência. A Escadaria do Rosário, por exemplo, é um local no centro da cidade que tem forte relação com a cultura africana. “Pela história, era a igreja dos escravos [construída por eles] no século XVIII e XIX, era o espaço que eles tinham sociabilidade”, diz Jaime. Atualmente, na Escadaria, acontece a Feira Afro Artesanal, dedicada à valorização do empreendedorismo artesanal africano.

Dona Adélia Domingues participa da Feira há sete anos. Ela sai de casa no Rio Vermelho, no norte da ilha, e pega seu ônibus por volta das sete da manhã até a Escadaria para vender suas bonecas de pano negras e artesanatos de fuxicos [peças de roupas costuradas, que, quando juntas, formam flores coloridas]. Adélia reconhece a importância de lutar pela valorização de sua ancestralidade. “Se a gente que é afro não fazer alguma coisa pela nossa cultura, ninguém vai fazer e vai acabar”, desabafa.

Dona Adélia em uma das edições da Feira Afro Artesanal. (Foto: Acervo Instagram/@feiraafroartesanal).

No lugar onde Dona Adélia vende sua arte, antigamente servia a propósitos colonizadores. Jaime afirma que a igreja localizada na Escadaria era um local de interação social, mas com um propósito colonizador por trás: “era uma estratégia da Coroa Portuguesa para colocá-los [pessoas escravizadas] no mundo religioso”. Hoje, as práticas culturais de origem africana que acontecem em Florianópolis mantém o hábito da vivência em comunidade, e estão ligadas à religião e à espiritualidade.

Os chamados Aquilombamentos, por exemplo, são espaços coletivos de pertencimento, acolhimento e fortalecimento de identidade cultural para a população negra. “A gente não conta as pessoas, a gente não é número, mas nós somos uma rede em que sempre chega mais gente”, diz Luck Yemonja Banke, coordenador do grupo Afroexpressivo e Afropercussivo Ilu Oju Inu, composto principalmente por estudantes de graduação da UFSC. O grupo se reúne todas as quartas-feiras, na Feirinha da Universidade, frente à Reitoria I, no espaço próximo ao Acarajé da Eli. O grupo Afroexpressivo e Afropercussivo e o Acarajé constituem um Aquilombamento, e além de contribuir com a visibilidade da cultura afrodescendente em um ambiente universitário, abraçam diversas vivências, como as de pessoas LGBTQIA+s, negras, crianças, entre outros membros da comunidade acadêmica.

No Acarajé da Eli, Elisangela de Paula Pereira, mais conhecida como Eli, é uma das responsáveis pela produção e venda do alimento desde 2016. O acarajé tem origem africana, e é considerado sagrado. “Eu fui consultar o oráculo, que é o Ifá [oráculo africano, porta-voz de Orumilá e dos outros orixás], e também conversar com os nossos mais velhos para ter essa permissão de trabalhar com acarajé”.

A espiritualidade se manifesta nas atitudes cotidianas dos integrantes do Aquilombamento. Eles sempre se cumprimentam dizendo Aurê, que “significa: eu honro a sua ancestralidade, quem veio antes de você, para que a sua existência fosse possível hoje”, explica Eli. O vínculo com os antepassados é muito forte na filosofia e nas práticas de origem africana. “No Ebó [ritual africano] a gente toca, e isso é a gente reivindicando nossos saberes, nossos conhecimentos ancestrais, nossas ciências e nossas tecnologias”, conta Luck. 

A partir dessa filosofia praticada pelo Aquilombamento, o grupo reflete sobre o embranquecimento no processo de contar a história negra. De acordo com Eli, que também é graduanda do curso de Museologia da UFSC, “os nossos conhecimentos são passados através da oralidade pelos nossos mais velhos”, e completa “é algo difícil de ser registrado, porque quando o outro escreve sobre a gente, ele escreve sobre o olhar dele”. Partindo desse entendimento, ela pesquisa a possibilidade da criação de museus da oralidade. Para Luck, esse espaço poderia garantir um elo entre a comunidade e o compromisso com o registro histórico. “A nossa história vai morrer se matarem a gente, e a tentativa é essa. Então, a gente tá nesse processo de tentar continuar existindo, contra o genocídio”, desabafa.

Colaborando com a propagação da memória afro na atualidade, as manifestações afrodescendentes possuem mais do que uma função cultural e contribuem na denúncia e na luta antirracista. Em Florianópolis, um dos grupos que se destaca nessa questão é o Africatarina, que apresenta um forte caráter manifestante. Coordenado por Edson Roldan, o bloco percussivo trouxe o tema “Quem Grita? Quem Morre? Africatarina contra o Genocídio do Povo Negro e Indígena”, no carnaval de 2019. Mais conhecido como Mestre Edinho, o coordenador relata as motivações para a escolha da temática, “ninguém estava tomando essa posição aqui na cidade, então eu tomei essa posição. Quando a gente começou a ver essa mortandade de indígenas e de negros, a gente fez esse desfile”.

Grupo Africatarina no carnaval de rua de 2019, em Florianópolis. (Foto: Mhirley Lopes).

Assim como o Africatarina, o Cores de Aidê também é um espaço de resistência. O grupo de samba reggae, composto apenas por mulheres, valoriza o corpo negro e a relação que constrói com a autoestima de suas integrantes, principalmente as afrodescendentes. “Eu tenho sentido que as mulheres negras estão cada vez mais entendendo o espaço do bloco como lugar de segurança, é lugar para brilhar”, diz a organizadora Dandara. Para ela, “a sociedade coloca a mulher negra no lugar de não ser amada, de não ser vista como bonita”. O Cores de Aidê busca subverter essa lógica imposta. 

Por meio de rodas de conversa, danças e músicas afrodescendentes, os dois blocos compactuam no fortalecimento da relação de seus integrantes com a cultura negra. “É um lugar de reconhecimento, de pertencimento, de saber qual que é o seu papel na história”, afirma Dandara.

Apesar do reconhecimento que todos esses espaços oferecem, é necessário um esforço coletivo da sociedade para que a cultura afrodescendente seja enaltecida. Em Santa Catarina, o maior obstáculo para o alcance desse objetivo é o racismo.  Segundo dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), publicado em 20 de julho de 2023, SC é o segundo estado com mais registros de injúria racial, seja ela verbal ou física (1.545 casos). “Eu sofri violência por causa do meu cabelo na minha adolescência”, desabafa Gisele Aparecida Farias, atriz e produtora da peça “Dona Jacinta”. Na obra, Gisele relembra essas experiências de racismo que viveu na infância e juventude, além de mostrar como as mulheres negras podem se empoderar contra a discriminação. “O cabelo da mulher negra não é só bonito, ele é o símbolo de uma luta”, diz a atriz, em um dos momentos da peça.

A violência relatada por Gisele não é exceção em Santa Catarina, o que dificulta o reconhecimento de pessoas pretas com a sua identidade afrodescendente. “O processo da consciência é um processo político de aquisição ao longo da vida, e isso tem a ver com o reconhecimento estético do que é ser negro, que passa pela cultura, por esse lugar de vivenciar plenamente essa experiência e se reconhecer nela”, explica a antropóloga Jaqueline. De acordo com estimativa do IBGE de 2019, apenas 3% das 7,1 milhões de pessoas do estado catarinense se reconhecem como negras. 

A representatividade, por exemplo, é uma ferramenta que contribui para o processo de identificação com as raízes culturais de pessoas negras. Entretanto, a representação não é necessária somente na área cultural, ela precisa perpassar todos os espaços de vivência. Outro cenário central para gerar mudanças é o político. De acordo com Tânia Maria Ramos, 58 anos, atual vereadora de Florianópolis, pelo PSOL ,“somos a maioria nesse país, e somos os que menos conseguem avançar nas nossas disputas, ou até mesmo nas nossas decisões de voto”. Para ela, o governo da cidade não prioriza a luta do movimento negro. Eleita em 2023, a política foi a primeira mulher negra a ocupar o cargo na cidade. Segundo Tânia, “eles [os espaços políticos] são instrumento para que a gente possa se reconhecer e lutar, porque sabemos que, dentro do índice, nesses espaços de poder, o que menos tem é o povo negro”. 

Para a vereadora, a educação é a principal ferramenta para combater o atual cenário de desvalorização da história afrodescendente. “A gente tem que abrir esse debate dentro das escolas para que a gente possa contar nossa história, que ninguém conte por nós”, afirma Tânia.

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